domingo, 20 de fevereiro de 2011

Para o cristão obediência é exigência (1Jo.2.3-11)

Por Marcelo Berti

Um dos fenômenos lingüísticos que acontece nesse trecho e se repete na carta é o uso dos verbos sabemos e conhecemos. Nesse texto vemos o uso do verbo grego “ginosko“, que significa algo similar a “vir a saber” ou “perceber“. Entretanto, eventualmente vemos o emprego do verbo grego “oida“, que pode ser traduzido como “sabemos como fato“. Entretanto o que nos chama a atenção é o uso da expressão “nisto sabemos” no verso 5. A expressão grega nessa sentença é “en toutö ginöskomen” e é usada cerca de 7x (2.5; 3.16, 19, 24; 4.2, 13; 5.2) nessa carta. Essa expressão é interessante, pois revela o conceito de convicção que marca essa epístola.

Outras expressões interessantes com quase a mesma configuração desta, encontrada outras vezes na epístola, que corroboram com a idéia da convicção cristã são: nisto se manifestou (en touto fanera; 3.10; cf. 4.9); nisto consiste (en touto estin; 4.10). Essas expressões são de uso majoritário joanino no NT, e em grande parte são vistos apenas em 1 João. Deve-se esse fato à ênfase do autor sobre a convicção cristã.

A semelhança do trecho anterior, esse texto parece ter sido escrito sob uma estrutura pré-formatada na mente de João. O texto inicia com mais um princípio anunciado: Obediência com evidência da comunhão com Deus (v.3). Desse princípio, duas aplicações negativas são apresentadas de com a fórmula “aquele que diz…” (v.4 e 9) e respondidas com do ponto de vista correto (v.5 e 10).

Após a primeira aplicação do princípio, temos o que temos chamado de observação sobre o mandamento de Deus. Uma possível contradição é apresentada nesse primeiro parêntesis (mandamento novo), mas explanada.
Após a segunda aplicação do princípio do verso 3, temos algumas orientações pastorais do Apóstolo aos seus leitores, observada pela estrutura “Filinhos – Pais – Jovens” em duas exortações para cada grupo em especial. Ao que tudo indica, a primeira expressão de identificação de público englobas as outras duas.

Todas essas aplicações visam expandir o entendimento do leitor sobre as implicações do conhecimento de Deus, que é luz e que exige que Seus filhos andem em conformidade como Seu caráter.


A.     Princípio: Obediência é Exigência

Nesse verso vemos mais um princípio fundamental para a vida cristã: A obediência. Essa virtude cristã não é uma expectativa divina para seus filhos é uma exigência. Entretanto, deve-se notar que tal exigência não é pré-requisito para salvação, mas para a manutenção do relacionamento com Deus. As escrituras são claras em testificar que a obediência segue a salvação: “…eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência” (1Pe.1.2; cf. 1.14; Rm.1.5).

Sabemos que o conhecemos: É importante notar que tal expressão é iniciada no idioma em que foi escrito, do mesmo modo como o verso 1.5 foi iniciado: com a conjunção “kai”. Essa conjunção, normalmente traduzida por “e”, aqui funciona com sentido além de apenas conectar essa sentença com a anterior. Antes, indica um retorno a idéia anteriormente lançada em 1.5, a fim de discutir as implicações do Conhecimento de Deus tal como Ele é: Luz. “O autor irá discutir agora como um cristão pode ter certeza de que chegou a conhecer o Deus que é luz, novamente em contraste com os adversários do autor que fazem a mesma profissão de conhecer a Deus, mas falta a realidade do conhecimento, como seu comportamento deixa claro” (HARIS, W. Hall, Comfort and Cousel for a Church in Crisis, pp.80).

Outro detalhe interessante é que o autor usa duas vezes o mesmo termo conhecer (gr. gnoskö) e na tentativa de não ser repetitiva, a maioria das traduções em português opta pela construção com o verbo “saber” e “conhecer”. A idéia da expressão é apresentar a certeza do conhecimento de Deus. Ou seja, a questão não é epistemológica (como sabemos o que sabemos), mas pragmática (podemos ter certeza que o conhecemos). O que João nos ensina aqui é que a Teologia Verdadeira, ou seja, o conhecimento adequado de quem Deus é, deve promover a Verdadeira Prática Cristã. Ou seja, ortodoxia (doutrina verdadeira) produz ortopraxia (prática verdadeira).

…que o conhecemos: O termo em português “o” não apresenta uma clara referência aqui sendo possível que o pronome pessoal grego (autós) seja uma referência a Cristo ou a Deus. Considerando que o texto imediatamente anterior a esse falava sobre Cristo, algumas pessoas entendem que o verso aqui continua a referência a Ele. Entretanto, olhando o texto panoramicamente, percebemos que a intenção do autor é conduzir seus leitores ao correto conhecimento de Deus. Por isso é importante notar o início do verso: Se tal introdução é um modo de apresentar as implicações do conhecimento de Deus (1.5), então tal referência aqui é a Deus Pai.

É evidente que João aqui apresenta um critério pelo qual os cristãos primitivos poderiam avaliar suas próprias vidas em relação à certeza do conhecimento verdadeiro de Deus, do mesmo modo que poderiam aplicar o conhecimento recebido do apóstolo para avaliar os mestres que se denominavam “conhecedores” (gnósticos).

O termo usado por João para descrever o conhecimento de Deus é “gnoskö”. De modo geral, o termo é visto nas escrituras como sinônimo de saber (oida) e normalmente traduzido como conhecer (Jo.8.32; 14.17), ou outros termos que representem o reconhecimento (1Jo.4.12; cf. Gl.4.9), ter conhecimento (Rm.2.18) ou entendimento (Jo.3.10; 8.43). Entretanto, “gnoskö” tem um caráter mais relacional que intelectual que seu sinônimo, e eventualmente é usado para descrever relacionamentos íntimos (Mt.1.25; Lc.1.34). Ou seja, nesse texto João não está falando do conhecimento intelectual apenas, mas experiencial e moral também.  Portanto, a questão não é apenas ter informação sobre Deus, mas principalmente ter relacionamento com Ele.

Seria ainda apropriado ressaltar que o modo como João descreve essa sentença, podemos entender que ele não está falando de um relacionamento qualquer, mas de um relacionamento contínuo com Ele. John MacArthur nos lembra que João usa o termo no tempo presente, o que sugere que a idéia do termo é: “continuamos a conhecer”, e define o verbo como “experimentar o conhecimento” (MACARTHUR, John, Certainty of Christian Assurance). A.T. Robertson essa expressão do seguinte modo: “Sabemos que viemos a conhecê-lo e ainda o conhecemos” (ROBERTSON, A.T., Word Pictures in the New Testament). Ou seja, a idéia não é apenas um conhecimento empírico, mas primeiramente relacional e continuado: Trata-se de uma vida com Deus.

“Em outras palavras, “conhecer” Deus não é uma questão de um processo de pensamento correto, mas de uma relação espiritual genuína. O conhecimento de Deus, e a comunhão com Ele, são aspectos complementares da experiência cristã” (SMALLEY, Steven, 1, 2, 3 John).

…se obedecemos aos seus mandamentos: A sentença de João aqui responde uma das mais importantes questões dos cristãos: Como posso ter certeza que temos um relacionamento verdadeiro com Deus? A resposta é clara: Se obedecemos aos seus mandamentos.

Note que João usa aqui a expressão “seus mandamentos”. Mas, de quem são esses mandamentos? No evangelho, vemos Jesus apresentar o “novo mandamento” a seus discípulos (Jo.13.34-35; 15.12) e em alguns lugares o vemos falar sobre “seus” mandamento (Jo.14.15, 21; 15.10, 12). Entretanto, várias vezes o vemos falar sobre os mandamentos que recebera do Pai (Jo.10.18; 12.49-50; 14.31; 15.10). Entretanto, na epístola vemos essa mesma expressão (seus mandamentos) 8 vezes (2.3; 4, 3.22, 23, 24, 5.2, 3 x2) e em duas ocasiões fica evidente que trata-se dos  mandamentos de Deus (3.23; 4.21). Considerando ainda o contexto do texto, em que João apresenta a certeza do conhecimento de Deus, em referência à verdade ensinada em 1.5, é seguro auferir tal expressão ao próprio Pai.

…seus mandamentos: O que nos chama a atenção é a força do termo usado por João. O conceito do termo não é muito diferente, embora possa ter sido empregado com diferentes conotações. A idéia do termo sempre envolve um duplo conceito: Autoridade e Ordem – Aquele que estabelece um mandamento o faz por ter autoridade para tal, e, por conseguinte, seu mandamento é uma ordem sobre aqueles a quem tem autoridade.

Considere também que esse termo é usado no NT em referência ao Antigo Testamento como um todo (Mt.15.3) ou como uma parte específica do AT (Mt.22.36). É também usado tanto em distinção do termo “lei” (Gr. nomós – Rm.7.8-13; Mt.22.40) como em identidade com ela (Hb.7.16-18). Tendo isso em vista, entendemos que a referência é genérica que sua aplicação o deve ser igualmente. Portanto, a obediência exigida do cristão envolve todo o mandamento de Deus revelado nas escrituras.

Mas, quais seriam esses mandamentos? Nesse texto não temos qualquer indicação de quais “mandamentos” estão em foco. Não parece apropriado pensar que trata-se apenas do Decálogo, uma vez que não temos qualquer indício de que João intencione levar seus leitores à lei judaica. Também não parece o caso de outro grupo específico de leis ou ordens divinas. O modo genérico usado por João aqui, lembra o modo como Jesus falara com o Jovem rico: “Guarde os mandamentos” (Mt.19.17). Ainda que o Jovem tivesse interesse em saber quais eram esses mandamentos, o uso genérico dessa expressão sugere que todos eles estão em foco. Entretanto, é possível que a visão resumida da Lei estivesse em ênfase aqui: Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, pois “destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt.22.40; Rm.13.9-10). Considerando a grande ênfase de João sob o tema do amor, essa parece uma boa opção.

“Não é irônico o que as pessoas dizem hoje: “Se você conhece o amor de Deus, você não precisa se preocupar quando você estiver em pecado”. Mas o apóstolo João diz: “Se você conhece o amor de Deus, você não será capaz de continuar no pecado”. Porque se você realmente acredita no amor que Deus tem por você, então todos os seus mandamentos serão o conselheiro amoroso de um Pai todo-sábio” (PIPER, John, Obedience Confirms Our Standing in God).

…obedecemos: A grande questão apresentada aqui depende da compreensão desse termo, pois que significa obedecer? O termo grego “tereö” aqui tem pelo menos três características que podem nos auxiliar a entender a mensagem de João:
  1. O sentido básico do termo é guardar, usado literalmente várias vezes no NT (At.12.5). Em função desse uso, a aplicação desse termo nesse contexto sugere um cuidado especial. Não é mera observação, ou estrita conformidade, mas trata-se da diligente intenção em realizar aquilo que Deus ordena;
  2. Não trata-se de uma sujeição sem aceitação, como de um funcionário a seu chefe, mas de assimilação voluntária dos mandamentos, cujo desdobramento é prático;
  3. Implica objetivamente em persistência. Não é apenas o conceito da obediência que está em foco aqui, mas a continuidade da obediência.
Todas essas descrições nos servem de direcionamento para a compreensão da nossa responsabilidade para com Deus e sua palavra.

B.  Problemas: Atentados ao Relacionamento com Deus

De forma similar ao modo que vinha escrevendo, João passa a apresentar os equívocos práticos encontrados na voz dos falsos mestres na intenção de apresentar aos cristãos o modo acertado diante de Deus para se viver com Ele.

1.  Falsidade: “Eu O Conheço, mas não O obedeço”

Mais uma vez João faz uma aplicação prática simples e direta de um princípio bíblico anteriormente apresentado. Nesse caso, a convicção verdadeira de relacionamento com Deus pode ser confirmada por sua obediência aos mandamentos de Deus. Com isso em mente João passa a apresentar as afirmações dos oponentes da fé na expectativa de corrigir, mais uma vez, a visão dos cristãos sobre seus ensinamentos.

Aquele que diz: No versos 6, 8 e 10 do primeiro capítulo vemos uma construção similar a essa na expressão dos ensinos dos falsos mestres (se dissermos). Aqui, João usa um modo diferente para se referir ao ensino dos falsos mestres, e o faz de modo mais claro: “Aquele que diz”. Nesse caso, João já não se aproxima de seus leitores para apresentar o equívoco, mas fala sobre um erro conhecidas entre pessoas que se diziam cristãs.

Nesse caso é evidente que João cita o ensinamento falso conhecido pelos cristãos a quem escreve, sendo isso observável pelo fato de que usa a conjunção “hoti” para apresentar a falsa proposta. Como os primeiros exemplares das escrituras não continham pontuação, muitas vezes a pontuação é subentendida pelo modo como escrevem seus autores. Por exemplo, a conjunção “hoti” eventualmente traduzida pelo nosso pronome relativo “que”. Em alguns casos a idéia de pontuação é tão clara que algumas versões já trazem o uso dos dois pontos, como em quase todas as versões em português apresentam (ROBERTSON, A.T., Robertson’s Word Pictures in the New Testament). É por essa consideração que muitos comentaristas encontram nessa frase a exata citação do falso ensino dos hereges. Raymond Brown, por exemplo, atesta: “As falsas declarações aqui podem aproximar0se de ser citações exatas dos separatistas, ao passo que aquelas encontradas no capítulo 1 sejam apenas inspiradas por tais separatistas, mas reformuladas no texto do autor” (BROWN, Raymond E., The Epistles of John, 253).

…eu O conheço: Essa é a afirmação principal dos hereges em destaque aqui. Essa expressão tem sida entendida em níveis diferentes por comentaristas diferentes. John Gill entende que trata-se de alguém que “presume ter grande, ou até mesmo perfeito conhecimento das coisas divinas” (GILL, John, Exposition of the Entire Bible). De modo um pouco diferente, Albert Barnes entende essa expressão é mais específica, pois apresenta a descrição de alguém “que professa ter familiaridade com o Salvador, ou que professa ser cristão” (BARNES, Albert, Notes on the Bible). B. W. Johnson em consonância com Barnes, entende que João fala de pessoas que dizem “ter o conhecimento salvífico de Cristo” (JOHNSON, B.W., The People’s New Testament).

Por outro lado, há quem pense que tal declaração fale sobre o relacionamento do cristão com Deus. Thomas Constable entende que a profissão aqui é “evidentemente outra afirmação de ter um relacionamento de proximidade com Deus, e não o de ser salvo” (CONSTABLE, Thomas, Constable’s Notes ont 1John).  A diferença conceitual pode ser pouca, mais as implicações são bem distintas: (1) Caso a idéia de salvação esteja em foco, a falta de obediência aos mandamentos de Deus seria uma demonstração da nossa não salvação; (2) Caso a idéia de relacionamento com Deus esteja em foco aqui, a falta de obediência falaria sobre nossa distância de Deus, embora pudessem ter tido um encontro genuíno com Cristo.

Do ponto de vista prático, as duas implicações são reais e encontradas na vida cristã: Muitos desobedientes encontrados entre os cristãos, nem sempre são cristãos, e se o são, estão distantes de Deus e sua palavra. Entretanto, qual é a ênfase de João nesse verso? A resposta a essa pergunta encontra no referencial da expressão: A quem afirma conhecer: Jesus ou Deus? Como já vimos no verso anterior, a falta objetiva de nomes no verso três, e agora no verso quatro, tem tornado ambíguo o entendimento do texto, mas já temos demonstrado que o texto fala a respeito do Deus Pai, e portanto, a alusão feita por João aqui refere-se àqueles que dizem conhecer a Deus. Ele não está enfatizando primeiramente a salvação do indivíduo, mas a incoerência de sua afirmação, pois não há como conhecer a Deus senão por Cristo (Jo.14.6; cf. Jo.10.7-9; At.4.12), do mesmo modo que não é possível conhecer a Deus intimamente e não obedecer-lhe os mandamentos (Jo.14.15, 21, 23; 15.14; 15.9-10; 16.17; 17.23). Ou seja, “as palavras de um homem devem ser provadas por suas obras. Se desobedece aos mandamentos de Deus, sua alegação de que veio a conhecer a Deus é uma mentira (cf. 1.6). Sua conduta contradiz sua profissão e prova que ela é falsa” (STOTT, John, 1, 2, 3 João – Introdução e Comentário, pp.79). “Os mentirosos se jactam de que tem fé sem piedade. Muitos hipócritas se jactam inutilmente de que tem fé; o apóstolo acusa a todos os tais de falsidade” (Calvino).

…e não guarda os seus mandamentos: Como demonstramos no verso anterior, o termo “mandamentos” usado genericamente na epistola sugere que João tem em mente o todo das escrituras. Tal conclusão é favorecida pelo uso do termo “palavra” no verso seguinte de modo sinônimo ao termo em pauta. É por isso que pode-se suspeitar de um antinomismo[1] sendo aproximado dos leitores originais dessa carta.

Portanto, é claro que a rejeição à obediência dos mandamentos de Deus é reflexo de uma teologia desequilibrada que poderia ter sido fundada na rejeição das escrituras. Independente de qual tenha sida a razão dessa rejeição, é evidente que é o desdobramento prático o foco da atenção de João: Afirmar conhecer a Deus e não Lhe ser obediente, é uma afirmação mentirosa de alguém que não tem a verdade.

Existe antídoto para essa falsidade?
Do mesmo modo que já fizera nessa epístola, João não apenas apresenta o erro, mas também apresenta a solução para o mesmo. Diante do que esses versos indicam, a grande questão para João é a desassociarão do discurso cristão e sua prática: Nada adianta anunciar e não praticar; não adianta se orgulhar em belas palavras e nada demonstrar na vida. Diferente dos hereges, o cristianismo apresentado por João não é demonstrado em discurso eloqüente, mas em prática conseqüente.

Dois antídotos para a falsidade são oferecidos por João nesse verso: (1) Obediência às Escrituras e (2) Identidade com Cristo. Todo cristão que observar esses dois preceitos estará livre da falsidade em que se jactavam os hereges além de ser conduzido a uma vida de proximidade com Deus e com seus irmãos que igualmente buscam o mesmo objetivo.

a. Obediência às Escrituras
A primeira manifestação de contraste oferecida por João no verso cinco inclui a realidade de alguém obediente às escrituras, ou à Palavra de Deus. Observe que João usa a expressão “sua palavra”, ou seja, a Palavra que pertence a Deus e Dele procede.

…sua palavra: é interessante lembrar o leitor que o termo usado aqui por João é diferente do que vinha usado: “mandamentos”. Na tentativa de apresentar a relação do termo “palavra” com o contexto, John Gill entende que o termo expressa a verdade do evangelho (GILL, John, Exposition of the Entire Bible). Adam Clarke entende o termo com o conteúdo das escrituras e o descreve como doutrina (CLARKE, Adam, Commentary on the Bible). Albert Barnes entende que o termo é uma referência mais abrangente ao que é dito ou ordenado por Deus, o que inclui tudo o que Ele tornou disponível a nós (BARNES, Albert, Notes on the Bible). John Stott opta por demonstrar certa distinção entre os dois termos e afirma que a obediência do cristão não é apenas aos mandamentos em particular, “mas a Sua Palavra em geral, considerada como a única e completa revelação da Sua vontade” (STOTT, John, 1, 2, 3 João – Introdução e Comentário, pp.79). Note que em todas as diferentes leituras do termo, entendemos que Deus é a fonte de tal “palavra”, e que ainda que a visão mais restrita (Gill) seja a visão aqui, a relação de procedência dela é fundamental.

Ainda que esses dois termos tenha sua natureza intercambiável (Jo.14.21, 23, 25), é possível notar que João repete o princípio apresentado no verso três e o expande à compreensão. No verso três ele afirma que quem conhece a Deus, obedece seus mandamentos, mas aqui, fala da obediência de Sua Palavra (que inclui todos os mandamentos em particular) demonstra que o amor de Deus é aperfeiçoado nele. Sobre isso, Steven Cole afirma: “A Bíblia contém muitos mandamentos específicos sobre como devemos viver, mas também inclui muitos princípios gerais que dizem respeito à forma como você pensa, suas motivações e seus objetivos. Assim, devemos obedecer toda a Palavra de Deus” (COLE, Steven, How to know that you know him, pp7).

…nele, o amor de Deus tem sido aperfeiçoado: Ou seja aquele que é obediente à palavra de Deus desfruta do benefício do aperfeiçoamento do amor de Deus. A grande questão é como entendemos a expressão “amor de Deus”. A construção gramatical grega dessa expressão é extremamente simples, como igualmente ambígua.  Existem quatro interpretações gramaticais possíveis para essa expressão grega:
  1. Objetivo: “O substantivo genitivo funciona semanticamente como objeto direto da idéia verbal implícita no substantivo principal” (WALLACE, Daniel, Greek Grammar Beyond the Basics, pp.116). Nesse caso, se a expressão “de Deus” for um genitivo objetivo, ela deveria ser traduzida como uma referência ao “nosso amor a Deus”. A.T. Robertson é favorável à essa leitura em função de que é “nosso amor por Deus que é realizado na obediência absoluta” (ROBERTSON, A.T. Word Pictures in the New Testament). Essa é a visão de Daniel Wallace (pp.121, n.136), C.H. Dodd (The Johannine Epistles, pp. 31); I. Howard Marshall (The Epistles of John, pp.125), Henry Alford (The Greek New Testament, pp.435) Stephen S. Smalley (1, 2, 3 John, pp.49), Joseph Excell (The Pulpit Commentary, pp.21) Jonh Gill, Thomas Constable (Constable’s Notes ont 1John, pp.17).
  2. Subjetivo: ”O substantivo genitivo funciona semanticamente como o sujeito da idéia verbal implícita no substantivo principal” (WALLACE, Daniel, Greek Grammar Beyond the Basics, pp.113). Nesse caso, a expressão deveria ser traduzida como “o amor de Deus por nós”.  Marvin Vincent opta por essa possibilidade, mesmo reconhecendo que não é possível ter uma decisão definitiva nesse assunto. Em sua opinião, o sentido expresso pela expressão em pauta é: “o amor com o qual Deus é feito conhecido e que representa sua natureza”. Para ele essa conclusão é a mais aceitável por que o genitivo subjetivo é o uso mais comum encontrado no Novo Testamento (Vincent`s Word Studies). Essa é a opinião de Brook Foss Westcott (The Epistles of St. John, pp.49), Rudolf Bultmann (The Johannine Epistles, pp.25), Johann Bengel (Gnomon, pp.116), David Smith (The Expositor’s Greek Testament, pp.174) e J.L. Houlden (A Commentary on the Johannine Epistles, pp.68).
  3. Plenário: Nesse caso, o substantivo genitivo incluiria ambas as idéias, objetiva e subjetiva. Ou seja, deveria ser traduzida como “nosso amor a Deus e o amor de Deus por nós” com ênfase na mutualidade do amor. Ebrard, por exemplo, entende a expressão como “o amor de Deus como o mútuo relacionamento de amor entre Deus e o homem” (1John -Lange’s Commentary). Steven Cole, após apresentar as duas primeiras possibilidades, entende que ambos os sentidos são complementares e que tal sentido parece o auferido aqui (COLE, Steven, How to know that you know him, pp.7). Robert Candlish defende que João fala aqui de tal relacionamento de amor: “Na obediência da palavra esse relacionamento de amor, até onde nos diz respeito, encontra sua complementação, ou é aperfeiçoado” (The First Epistle of John, pp.93).
  4. Atributivo: Caso a idéia seja atributiva, o sentido seria a demonstração do caráter do amor de Deus manifesto: “o divino amor”. Essa opção não é tão conhecida nem muito esboçada, mas é apresentada por Rudolf Schnackenburg  (The Johannine Epistles, pp.97).
O que se tem por certo nas gramáticas gregas é que a distinção entre um e outro tipo de usos do genitivo deve ser percebido pelo contexto (Wallace pp.112-121), Robertson (pp.495-503), Dana e Mantey (pp.78-79). Diante do contexto, é bem possível que todas as opções sejam possíveis, haja visto que diferentes comentadores as tem utilizado. É bem verdade que diante das implicações, todas as opções tenham seu valor, mas o sentido plenário parece ir além do que o texto parece demonstrar em sua simplicidade. O uso atributivo, ainda que gramaticalmente possível não esclarece o conceito do texto e falha em demonstrar se tal amor que tem as qualidades divinas é aperfeiçoado em Deus ou em nós. Assim, fica evidente que o sentido objetivo ou subjetivo são mais adequados e as implicações também são interessantes.

Caso o genitivo objetivo esteja em foco aqui, entendemos que a obediência aos mandamentos de Deus é o meio pelo qual desenvolvemos nosso amor por Deus. Tendo em vista que o termo aperfeiçoar não implica em perfeição, mas no processo para ela, então é possível que nosso amor a Deus amadureça a medida que crescemos na obediência a Ele. Essa conclusão parece em conformidade com o ensino de Cristo: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo.14.15). Ou seja, a obediência do cristão é evidência do amor que tem por Deus, e por Cristo.

Por outro lado, caso o genitivo subjetivo seja o uso aqui, a idéia é de que “o amor redentivo de Deus atingiu seu fim no homem que obedece a sua palavra” (SMITH, David, The Expositor’s Greek Testament, pp.175). Nesse caso, a obediência do cristão é uma demonstração da eficácia do amor de Deus em nós. Essa conclusão parece em consonância com o ensino de João na mesma epístola: “Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é, em nós, aperfeiçoado” (1Jo.4.12).

Seja qual for a idéia do genitivo no nosso texto, podemos encontrar paralelos na literatura joanina como demonstração de similaridade com ele mesmo. É bem verdade que o sentido mais comum no NT da expressão refere-se ao amor de Deus por nós, mas, considerando que João aqui fala para cristãos faltosos na demonstração do amor, e que Deus como fonte do amor em nada tem os deixado faltosos, é mais provável que o sentido aqui seja objetivo. O amor que Deus oferece e é fonte, é certamente o fundamento da demonstração cristã do amor, mas tal amor a Deus se desenvolve à medida que obedecemos aos ensinamentos de Deus. Tal crescimento é esperado de todos os cristãos e a obediência é a evidência do desenvolvimento desse amor. A quem pouco amamos, pouco obedecemos.

…tem sido aperfeiçoado: Diferentes versões têm entendido essa expressão de forma diferente. Veja o caso da NVI, ARC e ARF que entendem o perfeito grego como consumativo: “está aperfeiçoado”. A ARA prefere descrever o perfeito aqui como consecutivo “tem sido aperfeiçoado” ao passo que outros comentaristas o entendem como proléptico ou futirístico “será aperfeiçoado”. Gramaticalmente todas as opções são possíveis, embora pareça claro que nosso amor a Deus não se mostra perfeito na obediência, mas em processo de amadurecimento na obediência.  Ou seja, à medida que crescemos na obediência a Deus, crescemos em nosso amor a Ele. A idéia de um amor a Deus completo na obediência parece exigir obediência completa, e esse é certamente o alvo da vida cristã.

b. Identidade com Cristo
Outra característica do cristão verdadeiro é sua identidade com Cristo e João torna isso bem claro quando escreve: “Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou”. Mais uma vez João demonstra que o ideal da vida cristã é a harmonia entre o que se professa e o que se vive.

Nisto sabemos: Essa é uma daquelas expressões características de João cuja ênfase repousa sobre a certeza e convicção do cristão. É bem verdade que alguns comentaristas parecem não ter completa certeza a que se refere essa sentença: (1) ela pode ser um complemento à frase anterior; (2) ela pode ser a introdução do conceito posterior. Eventualmente se sugere que a expressão seja uma “porta giratória”, fazendo referencia a ambas as idéias. Embora pareça interessante essa proposta, e ainda que nesse caso corresponda a verdade prática defendida por João, não entendemos essa proposta como um recurso literário aceitável. Dificilmente se usaria uma clausula com duplo sentido como auferido por essa opção: A ênfase é certamente uma referência ao próximo verso.

…que estamos nele: Temos certeza que estamos em Deus. Estar em Deus tal como descrito aqui, deve ser entendido como do mesmo modo que “permanecer” é descrito no verso seguinte. Trata-se de um estado de permanência em Deus; é uma descrição de relacionamento verdadeiro com Deus e não apenas a conceituação de um suposto relacionamento com Ele. A. Plummer sugere que “conhecer a Deus implica em obedecer seus mandamentos; e obedecer seus mandamentos implica em estar Nele, isto é, em ter comunhão com Ele e com Seu Filho, em quem a vida cristã (que é a vida eterna) consiste” (PLUMMER, A., Pulpit Commentary, pp.21).

Aquele que diz: “Permaneço Nele” [Deus]: Mais uma vez João se utiliza do recurso literário de expor um possível pensamento que poderia estar presente entre os cristãos a quem escreve. É interessante notar, todavia, que o modo como se refere ao relacionamento com Deus é descrito em diferentes termos: “Sabemos que o conhecemos” (v.3); “sabemos que estamos nele” (v.5) e “permanecemos nele” (v.6). O conhecimento de Deus é manifesto na obediência. Esse comportamento nos garante desfrutar de relacionamento com Deus e nos dá a certeza de que estamos em relacionamento com Deus. Johann Bengel afirma que tal progressão sugere “conhecimento, comunhão e constância” (BENGEL, Johann, Gnomon, pp.116). Observando esse fato, Smith sugere ainda que “não é suficiente apenas conhecer a Deus, nós devemos continuar em comunhão com Ele, permanecendo Nele até o fim” (SMITH, David, The expositor’s Greek Testament, pp.175).

…deve andar como Ele [Jesus] andou: Aqui um fenômeno interessante acontece: Há uma clara mudança de uso pronominal: Até aqui o pronome usado por João tinha sido “autós”, mas agora ele usa “ekeinós” sugerindo com isso a mudança de pessoa em foco. Ou seja, até aqui, João nos ensinou sobre conhecer, estar e permanecer em Deus, mas esses fatos são confirmados não apenas por nossa obediência a Deus, mas à nossa identidade com Cristo. “A prova da nossa comunhão com Deus é a imitação da vida de seu Filho. Isto não é declarado diretamente aqui, como se dá o caso do conhecimento, mas a reivindicação de permanecer nele, segundo somos informados, envolve obrigação moral de seguir os benditos passos de sua santíssima vida” (BROOKE, A.E, A Critical and Exegetical Commentary on the Johannine Epistles). Ou seja, “a pessoa que faz tal afirmação [estar em Deus] deve andar (ou seja, se comportar) justamente como Jesus andou durante sua vida e ministério terreno. Jesus estabelece o padrão e exemplo para o comportamento do cristão” (HARRIS, W.H., 1,2, 3, John, Comfort and Counsel for a Church in Crisis, pp.85-6).

Do mesmo modo que João havia estabelecido Deus como luz como exemplo, ele agora nos chama a Cristo, de modo que devemos agora imitá-lo. E, ele não simplesmente nos exorta a imitá-lo, mas a partir da união que temos com ele, ele prova que devemos ser como Ele é. Uma identidade em vida e atos, ele diz, demonstrará que nós permanecemos em Cristo” (João Calvino).

É válido demonstrar que o termo grego “ofeilö” apresenta um pouco mais que um dever, e tem sido entendido como uma obrigação moral, e esse parece ser o sentido auferido quando o termo é usado por João (Jo.13.14; 19.7; 1Jo.3.16; 4.11; 3Jo.8). Ou seja, é nossa obrigação moral como filhos de Deus levarmos uma vida como o Filho de Deus levou. Nos chama a atenção para o modo como ele relata sua experiência com Deus, observe: “Se vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço” (Jo.15.10). Essa relação de intimidade com Deus, demonstrada por Jesus Cristo deveria ser nossa realidade como filhos de Deus e seguidores de Cristo, afinal, quem segue a Jesus Cristo jamais andará em trevas (Jo.8.12), e estará na luz, como Deus está na luz (1Jo.1.5) e desfrutaremos, então, de comunhão com nossos irmãos (1Jo.1.7).

O primeiro passo referente a vida cristã é a iniciação em Cristo; o próximo passo é a imitação de Cristo. Nós não podemos ser considerados cristãos se não estivermos em Cristo, e não poderemos estar verdadeiramente em Cristo se a vida de Cristo não for vivida novamente em nós, de acordo com nossa capacidade” (EXELL, Joseph, The Biblical Ilustrator, pp.92)
Não podemos afirmar que permanecemos Nele a menos que nos comportemos como Ele” (STOTT, John, 1, 2, 3 João, pp.80).
Permanecer em Cristo é outro sinônimo para demonstrar íntimo relacionamento com Ele, como tendo comunhão com Deus e o conhecendo experimentalmente. O ponto de vista de João é que o cristão que permanece em Deus irá obedecê-lo do mesmo modo que Jesus Cristo permaneceu em Deus e demonstrou esse fato pela obediência a Seu Pai” (CONSTABLE, Thomas, Constable’s Notes ont 1John, pp.18).

Se alguém diz que permanece em Cristo, deve andar do mesmo modo que Ele andou. Caso contrário você perde sua segurança e no fim das contas prova que nunca conheceu a Cristo (…) Conhecer a Cristo implica em obedi6encia, e desse fato vem a doutrina joanina da segurança: Você pode saber que conhece a Cristo, se o obedece. E dessas duas verdades provém a obrigação: viver como Cristo” (PIPER, John, Obedience Confirms Our Standing in God).

2.  Falta de Amor: “Estou na luz, mas não amo meu irmão”

Outro problema que parecia assolar aquela comunidade primitiva era a falta de amor entre os irmãos.  “Outra afirmação feita pelos oponentes é apresentada agora: Eles afirmam estar na luz. Entretanto, as ações dessas pessoas em odiar seus irmãos cristãos fala mais alto do que suas palavras. Até onde o autor de 1 João está ciente, essa pessoa continua nas trevas, independente de sua afirmação contrária” (HARRIS, W. Hall, Comfort and Cousel for a Church in Crisis, pp.91).

Aquele que diz estar na luz: A afirmação “estar na luz” é certamente um adendo a idéia de que Deus é luz, e portanto, um indicativo de que tal pessoa proclamava desfrutar de relacionamento com Deus. É interessante que a expressão “estar na luz” refere-se especificamente a um estado de relacionamento com Deus, o que deveria ser entendida como uma expressão análoga a ser salvo. John Gill entende que João ataca aqui aqueles que se intitulavam iluminados (GILL, John, Exposition of the Entire Bible), ou seja, estaria enfatizando novamente os gnósticos e atacando seu ensino nocivo. Adam Clarke entende que esse texto fala daquele que professa ser um cristão convertido, embora demonstre com sua vida que “não recebeu o conhecimento salvífico da verdade” (CLARKE, Adam, Commentary on the Bible). Ou seja, “afirmar estar ‘na luz’ é uma coisa; mas fazer isso praticando o ódio, e não o amor, é uma contradição. Aliás, desobedecer a lei do amor torna um relacionamento com Deus impossível. Por isso, estar em Deus significa viver como Cristo viveu” (SMALLEY, Steven, 1, 2, 3 John, pp.60).

“Nós devemos obedecer ao mandamento do amor, e ao fazer isso, confirmamos nossa permanência em Deus” (PIPER, John, The one Who loves lives in light).

…e odeia a seu irmão: Devemos notar aqui ao menos dois termos interessantes: (1) ódio e (2) irmão. O termo em geral tem conotação negativa na literatura joanina, como demonstra a própria idéia do termo odiar (Gr. miseö). Esse ódio é normalmente expresso como uma reação do mundo a Cristo (Jo.7.7), aos cristãos (Jo.15.18, 19; 17.14) e à verdade (Jo.3.20). Entretanto, João expande a idéia de que o ódio oferecido a Cristo é uma indicação de ódio a Deus (Jo.15.23). Ou seja, o ódio é sempre um indicativo de antagonismo contra Deus que é amor, que revela-se através de Seu Filho e que mantém e sustenta seus filhos. É por isso que em 1 João o ódio é sempre apresentado como uma atividade realizada por aqueles que se dizem cristãos, mas não o são (1Jo3.15). É interessante notar que o ódio a um irmão é um indicativo de falta de amor a Deus (1Jo.4.20). Entretanto, há um tipo de ódio que é aconselhável por Cristo e que deveria ser realidade em todos os cristãos (até por ser mandatório por Cristo) é o ódio pela própria vida nesse mundo (Jo.12.25). Na tentativa de apresentar um sentido mais próximo dos nossos leitores, Hoon apresentou o conceito de ódio do seguinte modo:

“A pessoa que não ama, não sabe que não é amorosa; imputa ao outros as falhas de si mesmo. Também não sabe o desastre inevitável a que sua maneira de andar a leva. Em certo sentido, anda nas trevas, por que as trevas a cegaram. Em outro sentido, ela está cega, porque tem andado nas trevas. Aquele que se recusa a ver, finalmente não . pode mais ver. O ódio constante destrói progressivamente a capacidade para o bem. Finalmente, faz outros tropeçarem. O ódio enerva outros e os faz revidarem; a retaliação com freqüência prejudica aos inocentes; a vingança envenena os motivos que se vêem nos outros; a hipocrisia do crente que diz que anda na luz, mas odeia o seu irmão, é um opróbrio para a igreja, repelindo ao inquiridor sincero e edificando ao sínicos (…) O ódio pode prejudicar os tecidos do corpo e induzir a enfermidades, Um médico diz que meia dúzia de palavras amargas fazem a própria pepsina do estômago perder seu efeito. O ódio desequilibra e inflama a mente. Subverte o pensamento, transformando em paixão e mina o julgamento inteligente” – Hoon, IN: CHAMPLIN, Russel Norman, Vol. 6, pp.238).

Outro termo interessante a ser observado é o termo irmão (Gr. adelfós). Esse termo é usado para descrever relacionamentos familiares (Jo.1.41; Mc.3.35), ou descrever a identificação nacional de alguém (Rm.9.3). Eventualmente é usado para falar sobre aquele que nos é próximo (Mt.5.22), ou seja, a qualquer pessoa próxima a nós. Em outras ocasiões, o termo descreve pessoas que pertencem à fé cristã (Rm.8.29) ou a alguém com quem temos identidade (Mt.23.8). É interessante que todas essas possibilidades são possíveis aqui, e João usa esse termo de modos diferentes. Além do uso normal do termo, isto é, em descrição familiar (Jo.1.40; 41; 2.12; 1Jo.3.12), ele também fala sobre Cristo chamando seus discípulos de irmãos (Jo.20.17). Normalmente, João usa o sentido religiosos do termo ao se referir aos cristãos (1Jo.3.13), embora eventualmente o termo descreva uma pessoa qualquer, alguém conhecido e próximo (1Jo.3.15). É por isso que diferentes comentaristas tem entendido esse texto de modo diferente.

Por exemplo, Willian Barclay entende que o termo se refere “ao nosso próximo, nosso visinho, a pessoa com quem trabalhamos ou com quem temos contato todos os dias” (BARCLAY, Willian, Daily Bible Studies). Já Albert Barnes entende que o termo descreve “aqueles que professam a mesma religião” (BARNES, Albert, Notes on the Bible). A versão NET Bible entendeu que o termo é usado aqui como referência a outros cristãos e adota essa leitura como tradução do texto. Já Gill prefere entender esse termo de modo mais abrangente e entende que ambos os conceitos (o mais abrangente ou o mais específico) estão inseridos nesse termo nesse texto.

De fato, é importante lembrar que conceitualmente as duas leituras são possíveis. Entretanto, já observamos que João está atacando os falsos ensinos dos falsos mestres. Temos consciência de que tais falsos profetas não são salvos, e por isso não apenas abandonaram a verdadeira igreja, como também distorceram a verdade a respeito de Cristo e da piedade cristã. Considerando que a expressão “aquele que diz” foi entendida como uma afirmação feita por aqueles que não fazem parte da igreja, é bem possível que o termo irmão seja inclusivo o suficiente para falar daqueles que não são da fé.

Diante desse fato parece mais segura á prática cristã entender esse termo de modo abrangente, o que parece respeitar melhor o texto original no seu contexto e assegurar uma prática cristã mais adequada à realidade do amor cristão, que deve ser irrestrito (Mt.5.43-44; 22.39-40; Rm.13.8; Gl.5.14; Tg.2.8).

…quem odeia está nas trevas: Essa conclusão parece também mas favorável ao contexto do mesmo texto, pois João garante que aquele que odeia está nas trevas. Estar nas trevas é um estado de oposição a Deus que é luz e não pode conviver com o pecado. Esse estado é que promove o ato de andar (viver) nas trevas. Sobre isso, bem nos alertar John Gill: “Nas trevas, isto é, no estado e natureza não regenerada, que é o estado das trevas e da ignorância: está sob o poder das trevas e dentro do reino de Satanás, que é o governante das trevas deste mundo” (GILL, John, Exposition of the Entire Bible). Portanto, não é possível que um cristão diga que ama seu irmão, mas não seja um verdadeiro cristão. O texto fala exatamente do contrário: Aquele que não ama seus co-iguais seres humanos demonstram por fato que não são cristãos verdadeiros. Duas são as causas dessa falsidade: (1) Pretensão e soberba hipócrita encontrada na franca contradição entre fala e prática e (2) na completa falta de identidade com Cristo, que demonstrou nos plenamente seu amor (Jo.13.1), em conformidade com o amor do Pai (1Jo.3.1; Jo.3.16) e nos convidou a fazer o mesmo (Jo.13.34; 15.12, 17). Portanto, trata-se de um desobediente não salvo, que jacta-se de sua falsa espiritualidade hipócrita.

…não sabe para onde vai, pois as trevas os cegaram: Esse mesmo, que afirma estar na luz, mas comprova sua mentira pela falta de amor expressa no ódio, não pode liderar ninguém ao conhecimento verdadeiro, ainda que diga isso. João entende que tal pessoa não sabe para onde vai, pois foi cegado pelas trevas. Esse conceito apresentado por João, lembra muito bem o dito de Jesus sobre os fariseus: “Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado, mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece” (Jo.9.41). O estado de cegueira espiritual é o estado natural do ser humano, e as escrituras são claras em falar desse fato (Ef.4.17-19; 2Co.4.4). Entretanto, quando tal cegueira é apresentada como clara visão, ou com uma nova visão sobre a verdade, a prepotência hipócrita da falsa religiosidade é expressa na clara indicação de um estado de oposição a Deus. Os que jactam-se de sua superioridade, do conhecimento elevado, e de uma posição de íntima relação com Deus e não demonstram esses fatos na prática, são cegos insensatos (Mt.23.17), guias de cegos (Mt.23.16; 24) que levam pessoas a destinos indesejáveis (Mt.15.14).

Era necessário que os cristãos percebessem não apenas a falsidade dos ensinos dos falsos mestres, mas o perigo de seguí-los em tais ensinamentos. É por isso que João nos lembra: “Escrevo-lhes estas coisas a respeito daqueles que os querem enganar” (1Jo.2.26). É por isso que a manutenção da verdade ensinada por Cristo e propagada por seus santos apóstolos é tão importante para a verdadeira vida cristã.
Com a exposição desses versos aprendemos que é verdadeiro o ensino de Cristo em Lc.11.23: “Aquele que não está comigo é contra mim, e aquele que comigo não ajunta, espalha”. Existem apenas duas categorias em que todos os homens pode ser incluídos: (1) Entre aqueles que tem comunhão genuína com Cristo, em função do seu relacionamento com Cristo, e que desfrutam de luz e do amor de Deus; e (2) aqueles que não tem comunhão com Deus e, portanto, vivem nas trevas e no ódio. Nesse sentido não existe área cinza: Ou está em Deus ou não está. A clareza dessas palavras deveria fazer com que todo cristão se colocasse diante de Deus em temor e buscasse com Ele, viver em conformidade com as escrituras, Seu padrão de exigência para Seus filhos.

“A primeira coisa que nos impacta nessa passagem é que João vê os relacionamentos pessoas como preto e branco. No que se refere a nossos irmãos, podemos ou amor ou odiar. Do ponto de vista de João, não existe essa tal ‘neutralidade’ nos relacionamentos pessoais. Ou como Westcott afirma: ‘Indiferença é impossível. Não existe essa penumbra no mundo espiritual” (BARCLAY, Willian, Daily Bible Studies).

Existe antídoto para falta de amor?
Certamente. Mais uma vez, vemos João não apenas denunciar o erro, mas apresentar a proposta divina para a vida cristã verdadeira. Esse é o ideal para a vida cristã: Conhecer o equívoco e ao mesmo tempo a alternativa divina para acertá-lo. De nada adianta conhecer o erro e não saber o que fazer para acertar sua vida diante de Deus. Por outro lado, de nada adianta conhecer a alternativa divina e não praticá-la. Por isso, é fundamental ao cristão que tenha seu foco sobre as expectativas que Deus tem para nós como Seus filhos, associados à perseverança na manutenção dessas atividades aconselháveis pelo Senhor.

Quem ama o seu irmão: O idioma grego teria ao menos alguns termos para descrever o amor, com diferentes nuances empregadas em cada um desses termos. É bem verdade que eventualmente são usados como sinônimos e de modo intercambiável. Entretanto, João tem certo favorecimento pelo termo “agápe” e entende que tal termo descreve a essência de Deus, por que Deus é amor (Gr. agápe).

Note que João, quando descreve o amor de Deus, o faz consistentemente usando esse termo (Jo.3.16; 3,35; 10.17; 15.9; 17.23, 24, 26; 1Jo.3.1; 4.10, 11, 19), do mesmo modo que o faz com Cristo (Jo.11.5; 13.1; 13.34; 14.21; 15.9, 12). Não é à toa que nessa epístola somos diversas vezes chamados a amar (1Jo.2.10; 1Jo.3.10, 11; 1Jo.3.14, 18; 23; 4.7; 4.11, 12; 4.21; 5.1, 2). Ou seja, quando João fala do nosso amor ao nosso irmão (ou seja, nosso próximo, seja ele quem for) fala do exercício da identidade com Cristo e com Deus. Devemos amar na medida de Cristo e no modo de Deus. Devemos amar, uns aos outros.

Existe um tipo de atitude cristã que prega o amor com entusiasmo para pessoas em outros países, mas nunca procurou qualquer tipo de comunhão com seu visinho ou até mesmo conseguiu viver em paz dentro em seu próprio círculo familiar. João insiste no amor para homem com quem estamos em contato diariamente” – Willian Barclay

…permanece na luz: É interessante, todavia, que João demonstra não uma ordem aqui, mas um indicativo de fato: quem ama. Aquele que ama, e entenda aqui um amor como proveniente de Deus e não uma amor pessoal ou natural (1Jo.4.19), permanece na luz. Ou seja, quando exercemos a qualidade divina do amor em conformidade com Seu padrão, não apenas nos aproximamos da luz, mas na luz permanecemos. O estado de “estar na luz” é o ambiente do qual nós cristãos não deveríamos sair: Estar em Deus e com Ele viver.

Quem ama a seu irmão – Ou seja, seu próximo, seu semelhante, seja judeu ou gentil, de modo a continuamente realizar boas obras a ele, e de estar pronto a servi-lo de todas as formas, então permanece na luz. Ou seja, não apenas dá prova de que recebeu a Jesus Cristo o Senhor, mas que anda nele, que recebeu a graça da justificação e cresce nele” – Adam Clarke.

“Aquele que ama seu irmão não apenas entrou no ambiente da luz, mas fez dela seu lar: ele permanece na luz” – A. Plummer.

…nele não há tropeço: Essa expressão pode ser entendida de dois modos: (1) Em conformidade com Jo.11.9-10, esse cristão não anda em trevas, sabe para onde vai e não tropeça; (2) Ou, em conformidade como uso do termo tropeço (Gr. scándalon), esse cristão não é causa de tropeço para outros.

É bem provável que as duas idéias façam parte desse conceito. Bengel entende desse modo e garante: “Naquele que ama, não existe nem cegueira nem ocasião para tropeço; naquele que não ama, há tanto a cegueira quanto a ocasião para tropeço. Aquele que odeia a seu irmão, é uma causa de tropeço para si mesmo, e tropeça em tudo em todos; aquele que ama, tem o caminho livre” (BENGEL, Johann, Gnomon New Testament, pp.117).

[1] Antinomismo (anti: contra; nomós: lei) por definição é a representação ideológica daqueles que defendiam a não necessidade da guarda da lei na vida do cristão. Tal pensamento foi comum entre os gnósticos que repudiavam o judaísmo e consideravam o Deus judeu como um deus baixo e não amoroso e por isso indigno de respeito e louvor. Esse tipo de pensamento, também permeou a visão herética de Marcião, o gnóstico helênico-pseudo-cristão que negava qualquer valor das escrituras judaicas. No caso de Marcião seu repúdio ao Antigo Testamento era fundamentado da suposta vileza encontrada nas escrituras judaicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário