Por Marcelo Berti
Em Gênesis vemos uma declaração interessante sobre Deus, observe: “então, se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem na terra,
e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face
da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos
céus; porque me arrependo de os haver feito”
(Gn.6.6, 7). Essa declaração de Moisés sobre as palavras de Deus em
relação a humanidade é sem sombra de dúvidas interessante: Deus se arrepende.
Mas, isso significa que Deus muda? As escrituras são claras quanto ao fato de que Deus não muda, observe: “Porque eu, o SENHOR, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” (Ml.3.6); “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm.15.29); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17). Mesmo Moisés apresenta Yahweh como um Deus que não se arrepender: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?”
(Nm.23.19). Entretanto, em Gênesis lemos que Deus se arrependeu. Como
compreender o arrependimento de Deus (Gn.6) e o fato que Ele não se
arrepende (Nm23.19?) na visão do mesmo autor?
Responder a essa pergunta tem sido tarefa de todos os estudantes de
Teologia de toda a era cristã, e muitas propostas tem sido oferecidas.
Em nosso estudo iremos responder a essa perguntas em três estágios: (1)
Definindo Imutabilidade; (2) Entendendo a idéia de arrependimento; (3)
Apresentando nossa visão sobre o assunto no relato de Gênesis.
1. Deus é imutável?
Sobre a imutabilidade de Deus muita discussão teológica já se formou,
seja entre cristãos defendendo um ponto de vista diferente, seja
cristãos defendendo as escrituras aos ataques de não cristãos. É bem
verdade que diversas opiniões existem sobre esse assunto e não é
objetivo aqui apresentar todas as posições. Entretanto, trataremos das
duas mais conhecidas e provavelmente mais influentes de onde opiniões
menores ou subseqüentes são formadas: (a) A visão mais tradicional e (b)
uma nova visão. Oferecidas as duas opiniões também daremos nossa
opinião e conclusão sobre o assunto.
…
a. Visão Tradicional:
Já temos visto que as escrituras apresentam a Yahweh como Deus que
não muda, mas o que isso significa? Imutabilidade de Deus é a perfeição
que lhe é atribuída pelas escrituras que diz respeito à Sua capacidade
intrínseca de nunca fazer-se apresentar sob outro aspecto. Essa
perfeição é aplicada a Seu Caráter (Tg.1.17), Vontade (Is.46.9-10) e
Propósitos (Hb.6.17). Imutabilidade por vezes é reconhecida como a
perfeição absoluta, pelo fato de que Deus é completo, pleno em Seus
atributos (Nm.32.19; Sl.33.11; Ml.3.6; Tg.1.17). Sobre ela, Louis
Berkhof afirma:
“A imutabilidade de Deus é necessariamente concomitante com a Sua asseidade. É a perfeição pela qual não há mudança nele, não somente em Seu Ser, mas também em Suas perfeições, em Seus propósitos e em suas promessas. Em virtude deste atributo, Ele é exaltado acima de tudo quanto há, e é imune de todo acréscimo ou diminuição e de todo desenvolvimento ou decadência em Seu Ser e em Suas perfeições. Seu conhecimento e Seus planos, Seus princípios morais e Suas Volições permanecem sempre os mesmos[1]”.
Augustus Hopkins Strong definiu essa característica divina do seguinte modo:
“Por imutabilidade entendemos que a natureza, atributos, e Vontade de Deus são isentas de qualquer mudança. A razão nos ensina que nenhuma mudança é possível em Deus, seja por acréscimo ou decréscimo, progresso ou degradação, redução ou desenvolvimento[2]”.
Sobre o mesmo tema Vincent Cheung afirma:
“A imutabilidade de Deus procede de sua eternidade. Como não existe um antes ou depois com Deus, Ele é imutável em Seu Ser e Caráter. Esse atributo é associado com sua Perfeição. Se o Ser Divino já possui toda a perfeição, então Nele só poderia existir mudanças para pior[3]”.
Lewis Sperry Chafer complementa:
“Em nenhuma esfera ou relacionamento Deus está sujeito a mudar. Ele não poderia ser menos do que é, e, visto que Ele enche a todas as coisas, Ele não pode ser mais do que Ele é (…) Não somento não há mudança no próprio Deus, mas os princípios morais que Ele publicou permanece[4]”
Henre Clarence Thiessen adenda:
“A imutabilidade de Deus se deve à simplicidade de sua essência (…) Deve-se também à sua existência necessária ou auto-suficiente. Aquele cuja existência não é causada, por necessidade de sua natureza, tem que existir como existe[5]”.
Vale apena lembrar da colocação de Gordon Clarke sobre isso:
“Se a auto-existência pudesse mudar isso tornaria a existência dependente, a eternidade se transformaria em tempo; a perfeição em imperfeição e portanto, Deus se transformaria em não Deus. A imutabilidade garante que nenhuma das perfeições divinas mude[6]”
De um modo muito claro está definido pela Teologia Cristã Tradicional
que Deus a Imutabilidade de Deus faz parte do seu Ser e Caráter e que
todos os Atributos Divinos são igualmente imutáveis. Na visão de Cheung,
entendemos que a idéia de um ser Supremamente Perfeito, mudanças seriam
apenas em direção à degradação, o que é impossível a Deus, pois não é,
nem pode ser tentado pelo mal (Tg.1.13). Isso faz todo sentido com o que
lemos nas escrituras a respeito de Deus. As implicações de um Deus que
não se arrepende e não muda, conforme vemos na visão Chafer, é um Deus
confiável cuja palavra e decreto não podem não se cumprir. Ele não
desiste de suas intenções, ou seja é fiel e confiável, digno de ser
exaltado e adorado. A visão tradicional presa por um Deus Fiel à sua
Palavra e que por ser além do tempo, ter todo o conhecimento, poder e
perfeição está além da possibilidade de mudança. Sobre isso Ryrie
afirma:
“A imutabilidade oferece conforto e segurança de que as promessas de Deus não falharão (Ml.3.6; 2Tm.2.13). A imutabilidade lembra-nos de que a atitude de Deus em relação ao pecado, por exemplo, não muda. Logo, Deus nunca pode ser coagido ou induzido à mudança[7]”
É na imutabilidade de Deus que encontramos a segurança da salvação, a
certeza da vida eterna, a vitória sobre o mal e o cumprimento cabal de
todas as promessas feitas no passado. Sua Palavra jamais passará, pois é
Palavra Daquele que não muda e é Fiel. Yahweh, o Deus verdadeiro não
muda. Mas, ainda é importante perguntar: Como podemos saber que Deus não muda? Sobre a possibilidade de que Deus não pode mudar, existem três argumentos lógicos, fundamento nas sagradas escrituras[8]:
- Argumento da Eternidade: Para que uma mudança possa existir, deve existir um “antes” e um “depois”. Para que um “antes” e um “depois” existam é necessário uma cronologia. Para que a cronologia exista, é necessário que o objeto da mudança seja um ser temporal. Logo, não se pode aplicar mudanças a Deus, pois é Eterno e atemporal (Jo.17.5; 1Tm.1.9).
- Argumento da Perfeição: Uma mudança pode ser para “melhor” e para “pior”. Se não existe diferença não existe mudança. Ou algo necessário é acrescentado ou algo necessário é perdido. Mas Deus é perfeito. A perfeição de Deus implica em que Ele seja “ausente de ausências”, ou seja Deus é completo (Mt.5.48).
- Argumento da Onisciência: Quando alguém muda de idéia, é por que recebeu uma nova informação que anteriormente não conhecia. Contudo, Deus é onisciente, conhecedor dos infinitos fins das infinitas possibilidades. Ele conhecia a situação. Sendo assim, as situações mudaram e demandaram uma atitude diferente (Sl.40.5; 139.17, 18; 147.5; Is.40.28; Rm.11.33).
b. Uma nova visão
Como vimos, diante das escrituras e da teologia cristã, o Deus das
escrituras é um Deus que não muda. Entretanto, alguns pensadores têm
entendido que isso significa que ele não interage com a humanidade e por
isso não é pessoal. O Deus absolutamente transcendente, como a Teologia
Cristã Tradicional afirma, não é compatível com a idéia de um Deus que
se permite interagir com Sua Criação. Essa visão não é recente e estende
suas raízes desde as mais antigas idéias panteístas do passado. Para
explicar esse processo, Berkhof afirma:
“O teísmo sempre considerou Deus como um Ser pessoal, absoluto, de
perfeições infinitas. Durante o século XIX, quando a filosofia monística
estava em ascendência, tornou-se comum identificar o Deus da teologia
com o Absoluto da filosofia. Mais para o fim do século, porém, o termo
“Absoluto”, como uma designação para Deus, caiu em descrédito, em parte
por causa de suas implicações agnósticas e panteísticas, e em parte como
resultado da oposição à idéia do “Absoluto” na filosofia, e do desejo
de excluir toda metafísica da teologia.[9]”
A aproximação de idéias não monoteístas à teologia cristã e a
absorção do conceito pluralista da divindade acabou por rejeitar a
mentalidade da Teologia Cristã Tradicional de um Deus Absoluto, e passou
a vê-lo como um Ser sujeito à alteração de planos, propósitos e
conseqüentemente do seu próprio ser.
A transcendência divina foi subvertida pela defesa da imanência absoluta, ou seja, o Deus Absoluto foi substituído pelo Deus “relacional”,
aproximado do homem, comparável ao homem, à imagem do homem. A idéia é
que a dinâmica do relacionamento exclusivamente imanente de Deus em
relação a um mundo em evolução acontece em um processo contínuo e
intercambiável de alterações no relacionamento e no caráter, tanto de um
como de outro. Segue-se que, em conformidade com o progresso da
humanidade e de sua visão de Deus, há uma adaptação do caráter e do
relacionamento do Deus com suas criaturas. Ou seja, Deus não é Perfeito
ou Completo, está em processo de formação e sua interação com a
humanidade o transforma, modifica. Ou seja, para esses pensadores, para
Deus ser verdadeiramente pessoal, Ele precisa ser suscetível à mudança.
Para defender essa visão, Nelson Pike afirma:
- Se Deus é Atemporal Ele não é Presciente: Alguns textos apresentam a Deus como capaz de prever o Futuro (Rm.8.29; 1Pe.1.2). Porém, não há futuro para quem não está inserido no Tempo. Se Deus é atemporal, o tempo é um eterno e único agora, assim Ele não prevê ou antevê, mas apenas vê. Aqui nota-se um dilema: Ou Aceitamos uma concepção “bíblica” de Deus e rejeitamos a concepção grega ou o inverso.
- Se Deus é Atemporal Ele não Criou o Universo: Se Deus é Atemporal não pode agir no tempo, portanto não teria criado. Contudo, as escrituras apresentam uma criação sendo realizada no Tempo. Portanto, um Deus Atemporal não poderia ter Criado um Universo Temporal. Deus torna-se, então, criador, temporal e mutável.
- Se Deus é Atemporal Ele não uma Pessoa Completa: Uma pessoa completa está sujeita a corresponder intelectual, emocional e volitivamente a pessoas. Contudo, o conceito de Atemporalidade implica em Imutabilidade, que por sua vez aponta para alguém que não pode mudar de opinião, de sentimento e de vontade. Tornar-se-ia imóvel. Portanto, um ser que não possa compadecer-se, e que por certo é impassível de tal sentimento, é menos pessoal que aqueles que assim se procedem.
- Se Deus é Temporal é mais digno de Adoração: Se Deus pode compadecer-se de mim, mudar de opinião, vontade, Ele é mais capaz de interagir com a humanidade e por isso ser mais digno de adoração. Por que razão dedicar-se em clamor a um Deus que não Muda e não se Compadece?
- Se Deus é Atemporal Ele não está de acordo com sua Revelação: Se Deus é Atemporal, Ele é Imutável. Contudo as Escrituras apresentam suas mudanças em resposta a orações (Js.10), ou arrependimento dos homens (Jn.3) ou por causa da maldade humana (Gn.6). Algumas construções lingüísticas apresentam um conceito muito próximo a Temporalidade (Sl.90.2). As expressões como “pelos séculos dos séculos” (Ap.20.10) o evidenciam.
- Conclusão de Pike: “Concluirei que a doutrina da atemporalidade não deve ser incluída num sistema de Teologia Cristã”. Platão é a origem da doutrina da atemporalidade, “Mas Platão não era cristão – nem posso pensar em qualquer razão porque um cristão deva aceitar o julgamento de Platão sobre esta questão”. Deus torna-se então temporal e mutável
Nesse modo de visualizar a Deus, a idéia um arrependimento divino,
uma decepção cósmica é evidência suficiente para se comprovar que as
escrituras assim apresentam a pessoa de Deus. Por outro lado, a Teologia
Cristã Tradicional repudia a idéia de um Deus que muda, e tem nas
escrituras respaldo suficiente para defender esse aspecto. Portanto,
vemos um dilema aqui, mas, como tratá-lo?
C. Conclusão
Em primeiro lugar devemos notar que a visão da Teologia Cristã
Tradicional soa excessivamente dura e apresenta-se sujeita à má
interpretação. Note que Pike critica a idéia de um Deus Imutável, pois o
assemelha a uma porta: Não importa o quanto você procure se relacionar
(orar) ela, ela não irá deixar de ser uma porta.
Em segundo lugar, deve ficar evidente que a ideologia de Pike não
parece em conformidade com as escrituras. As colocações de Pike
conformam-se muito mais com a filosofia do que com a teologia cristã de
acordo com as escrituras, por outro lado sugerem visões alternativas
interessantes.
Por isso, acredito que a verdade aqui está sob tensão aqui: Alguns
tendem a defender um Deus tão imutável que eventualmente é visto como
imóvel e impassível; outros o preferem tão relacional e próximo, tão
perto e presente, que não o podem imaginar Soberano como as escrituras
parecem dizer que Ele é. Um movimento parece responder ao outro, mas sem
chegar de forma alguma ao cerne da questão ou resolvê-lo.
A verdade, por outro lado, compreende a transcendência de Deus, o fato de que é exaltado acima de tudo e todos por que é o que é e que ninguém jamais poderá sê-lo, e Sua imanência, o fato de que Deus se faz presente no tempo, ativo, participativo, de modo que sua Transcendência não minimiza sua Pessoalidade nem sua Imanência sua Soberania. Deus é completamente Soberano e Pessoal, perfeitamente transcendente e imanente: “Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o SENHOR, e não também de longe?” (Jr.23.23).
Por isso, é necessário avaliarmos se as premissas de Pike em busca de um Deus pessoal são verdadeiras:
- Se Deus é Atemporal Ele não é Presciente: Pike defendeu a idéia de um Deus temporal por Ele prever o futuro. Teria Pike se lembrado de como o próprio Deus vê suas promessas e decretos: “Eu sou Deus e não há outro semelhante Amim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade (…) E o disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito, também executarei” (Is.46.9-11). A divisão entre Pré-ciência e Onisciência nada mais é do que um equívoco lingüístico, pois um Deus que sabe todas as coisas (Onisciente) não apenas as sabe por previsão, mas por decreto. Aliás, se Pike assumir que o termo presciência de 1Pe.1.2 fala sobre a capacidade de previsão de Deus, que diremos de At.2.23 que fala sobre a morte de Cristo, de acordo com o determinado propósito e presciência de Deus? Teria Deus apenas antevisto a morte de Cristo? Certamente não. Nesse sentido, presciência e determinado propósito são características similares. Portanto, dizer que Deus está no tempo pois é capaz de anunciar o futuro é uma triste falácia retirada de qualquer lugar, menos das escrituras.
- Se Deus é Atemporal Ele não Criou o Universo: Sobre a idéia de um Deus atemporal não atuar no tempo, temos que entender que a premissa não é nem lógica, pois, em outras palavras Pike afirma que a Eternidade de Deus o faz Impessoal. A premissa fundamental de Pike aqui é que a pessoalidade depende do desenvolvimento que criaturas temporais sofrem no passar de suas vidas, e que a Eternidade privaria Deus de desenvolver, e portanto de se relacionar. Entretanto, não se compara o Criador com suas criaturas: O paralelo é o contrário: Por que Deus é pessoal suas criaturas o podem ser. Por ser criador, deve ser eterno, pois é anterior ao universo, e segundo as escrituras claramente posterior: “Assim diz o SENHOR, Rei de Israel, seu Redentor, o SENHOR dos Exércitos: Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus” (Is.44.6). É supremamente elevado, eterno e pessoal, pois existe desde a eternidade do modo trino. O relacionamento amoroso da Trindade desde antes da fundação do mundo é prova suficiente de que a Eternidade em nada minimiza sua pessoalidade (Jo.17.24; Gn.1.2, 26).
- Se Deus é Atemporal Ele não uma Pessoa Completa: Pike argumenta que um Deus atemporal deverá ser em última análise um Deus imóvel e impassível, e por isso não pode interagir com sua criação. Essa afirmação, entretanto, provém tão somente da imaginação em repúdio às escrituras, pois o Deus apresentado pelas escrituras tem todas essas características: “…do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17), comprovando Sua Imutabilidade; “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros” (Tg.4.8) comprovando sua mobilidade; “e isso lhe pesou no coração” (Gn.6.6) comprovando sua suscetibilidade à emoção. Certamente, isso não o faz um ser cujo sentimento sobrepõe sua determinação, como se pudesse ficar descontrolado, mas isso evidência um Deus que move e se comove com sua criação, sem ser sujeito à alteração de seu caráter, pessoa e plano.
- Se Deus é Temporal é mais digno de Adoração: Um deus suscetível a mudança não me parece um Deus digno da minha confiança, pois assemelha-se ao homem, que não apenas muda de opinião como não é confiável no cumprimento de suas promessas. Portanto, um deus mudável não é confiável, e portanto não mais digno de adoração, mas de pesar. Viver na confiança e dependência de um deus que não garante o que promete é o mesmo que correr atrás do pecado, que isso faz com plena autoridade: nunca entrega a felicidade que promete.
- Se Deus é Atemporal Ele não está de acordo com sua Revelação: Nesse quesito há relativo acerto, pois Pike parece reagir não primeiramente às escrituras, mas a visão tradicional das escrituras que defendem a impassibilidade de Deus e sua imobilidade. Já demonstramos brevemente que ambas as características são vistas em Deus e não podem ser apenas descartadas por preferência teológica. Contudo, diante delas, a premissa de Pike se demonstra equivocada, pois segundo as escrituras Deus É Atemporal e Pessoal, e isso está de acordo com sua Revelação.
A verdade é que a visão tradicional sempre entendeu a Deus como um
Ser imutável, em conformidade com as escrituras, mas eventualmente
ignorava a realidade de um Deus que interage com Sua Criação. Por outro
lado, a visão mais recente (que na verdade é uma adaptação de antigas idéias)
exalta a idéia da interação divina em detrimento e rejeição de Sua
Soberania. Toda essa movimentação teológica encontra-se no fato da má
compreensão da Imanência e da Transcendência de Deus. Por exemplo, Paulo
defendeu ambas as idéias. Note que em At.17.24-29 Paulo apresenta um
Deus extremamente Soberano e Auto-existente como Pessoal e Presente:
“O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem”
O Deus Todo-Transcendente de Paulo é o Criador do universo e de tudo o
que existe, Ele de nada depende, além de ser o doador da vida de toda
criação. Por outro lado é extremamente pessoal, pois se faz perto,
presente até mesmo daqueles a quem Paulo anunciava o evangelho, homens
pagãos. Ele é o Deus de quem derivamos a existência, que está perto de
cada um de nós, mas que não pode ser assemelhado à nada que esteja na
imaginação do homem.
Portanto, é seguro afirmar que o fato de ser Deus Soberano,
Auto-Existênte, Imutável em nada reduz sua Pessoalidade e Interação com
Sua Criação. Aliás, se todas essas características divinas estiverem
ajustadas em conformidade com as escrituras, ficará evidente o exagero,
seja na defesa da Imutabilidade de Deus ou de Sua Pessoalidade. O
importante é demonstrar que ambas as idéias são apresentadas sobre Deus e
nem por isso Ele é mais ou menos Deus: A verdade é que Deus o é Pleno
em ambos os aspectos e qualquer demérito ou acréscimo criará um novo
deus, e o Deus das escrituras terá sido manipulado pela imaginação do
homem.
2. O que significa a expressão “Deus se arrependeu”?
O que vimos até aqui certamente nos demonstra que apesar de Deus ser
Imutável isso não significa que Ele é um ser imóvel ou impassível.
Então, diante da realidade bíblica a respeito de Deus, como podemos
entender que Deus se arrependeu?
Os que defendem a completa imobilidade de Deus dirão que esse é o
caso da adaptação da linguagem adaptando os infindos caminhos de Deus
aos finitos caminhos dos homens. Já os que defendem a completa imanência
de Deus dirão que aqui temos clara evidência de que Deus muda.
Entretanto, gostaria de propor uma idéia alternativa para a visão do
arrependimento divino, que não exclui a idéia da adaptação da linguagem,
mas que rejeita a idéia da susceptividade de Deus à mudança.
A grande maioria dos teólogos tradicionais defende que aqui ocorre um
recurso didático chamado antropopatia, que nada mais é do que atribuir
sentimentos humanos a Deus. Isso é similar ao antropomorfismo, que
atribui formas humanas ao Ser divino, como as mãos de Deus, os olhos do
Senhor, entretanto, tal recurso fala da aplicação de sentimentos humanos
a Deus. Mesmo Calvino viu o arrependimento divino desse modo e afirmou:
“O mesmo significado pelas outras formas de expressão pela qual Deus é descrito humanamente a nós. Porque nossa insuficiência não pode alcançar a excelsitude dele, qualquer descrição que nós recebemos dele deve ser abaixada a nossa capacidade para ser inteligível[10]”
Calvino rejeitava abertamente a idéia de que Deus tem sentimentos e emoções e o apresentava como “incapaz de todo sentimento de perturbação” e, “portanto,
quando nós ouvimos que aquele Deus está Irado, nós não devemos imaginar
que há alguma emoção nele, mas deve-se considerar o modo de fala
acomodado a nosso modo de sentir[11]”. É por isso que em seu comentário de Gênesis ele afirme:
“O arrependimento que aqui é atribuído a Deus, não pertencem a ele, mas tem é referido aqui para a nossa compreensão dele. Como não podemos compreender como ele é, é necessário que, para o nosso bem Ele seja em certo sentido, transformar-se. Que o arrependimento não pode ter lugar em Deus, facilmente surge a partir da consideração de que nada acontece, é por Ele inesperado ou imprevisto. O mesmo raciocínio e observação, aplica-se o que se segue, que Deus foi afetada com pesar. Certamente Deus não depressivo ou triste, mas permanece para sempre como ele em seu repouso celestial e feliz: ainda, porque não poderiam ser conhecidos quão grande é o ódio de Deus e ódio do pecado, pois o Espírito acomoda-se à nossa capacidade[12]”
Entretanto, Deus fez questão de usar a linguagem como modo de
comunicação de seus planos e usou homens para transcrevê-lo fielmente.
Ele também usou Seu Santo Espírito para superintender os seres humanos
em pleno uso de suas faculdades mentais para transcrever do melhor modo o
que intencionou transmitir. Por isso tendo a crer que essa palavra é a
melhor palavra hebraica para descrever o que acontece nesse texto, pois
foi assim inspirada por Deus debaixo da supervisão do Espírito Santo.
A idéia da adaptação da linguagem só seria possível se conhecêssemos a
linguagem divina e soubéssemos o que Ele quis dizer em Sua linguagem,
do contrário, é mera especulação. Do ponto de vista da tradução, só
sabemos que um texto é uma paráfrase ou adaptação do original quando
conhecemos o original, quando não o conhecemos, entendemos que o texto
traduzido é a melhor representação do original. A não ser que Calvino
tenha acesso a excelsitude de Deus, não pode saber se isso é de fato uma
adaptação de linguagem. Na verdade, entendo que a idéia do
antropopatismo aqui é uma fuga sutil de um tema complicado para aqueles
que não vêem em Deus a susceptibilidade à emoção.
Contudo, devemos nos lembrar que o fato de ter Deus se arrependido
não expressa uma ocasião de alteração de Sua Personalidade, Plano ou
Vontade, e isso pode ser demonstrado pelo próprio livro de Gênesis e
pelo próprio termo à luz do todo das escrituras. Isso, de certa forma, é
uma acomodação da linguagem, mas prefiro entendê-la não nos moldes de
Calvino, mas em reconhecimento da falibilidade, falência e insuficiência
da linguagem.
Em primeiro lugar, nas escrituras já nos temos
demonstrado até aqui que Yahweh é um Deus poderoso e que faz o que quer
quando quer. A idéia de um Deus Plenamente soberano e controlado, que
faz tudo de acordo com um claro planejamento, pois é organizado e
supremamente inteligente e sábio para arquitetar o universo do modo como
o foi. No relato da criação, também conhecemos um Deus que é poderoso e
doador, é capaz de criar e dar-se por sua criação. Na criação do homem
vemos um Deus que faz o homem em conformidade com sua Imagem e
Semelhança. A isso entendemos que tudo o que o ser humano é, o é em
dependência da existência de Deus. Se sabemos e pensamos, é por que
nosso Criador o é e faz em proporções Eternas. Se amamos é por que Ele
nos amou primeiro. Toda nossa constituição imaterial reflete e depende
do nosso criador. Nossa capacidade de se relacionar provém do nosso
Criador, do mesmo modo que nossa capacidade de sentir. Todavia, nós
somos criaturas, o hoje o somos de modo carnal, por isso não podemos
supor que Ele sabe ou sente como nós, mas que nossa capacidade de saber e
sentir provém do nosso Criador. No relato de Caim e Abel, conhecemos um
Deus interativo e ativo no relacionamento com Suas criaturas, e é
apresentado como um Deus paciente e misericordioso que determina o juízo
do modo como lhe apraz. Na descrição das genealogias não o vemos
ausente, mas participativo e relacionável com sua criação (Enos, Enoque,
Noé). No relato do dilúvio, vemos um Deus que vê e intervém do modo que
lhe apraz. Por isso, não podemos isolar a sentença referente a seu
arrependimento do contexto do todo do livro de Gênesis. Um fato
importantíssimo que se deve considerar é que Deus já fizera a promessa
de libertação da raça humana no relato da queda e que tal promessa não
ficaria sem cumprimento: Sabemos por fato que Deus é Fiel. Portanto, não
podemos nem supor que Deus faltou com planejamento, ou que teria sido
pego de surpresa pela maldade do homem. Isso significa que apesar de Seu
Controle Soberano não ter sido perdido, isso não o isenta de sentir
pesar por Sua Criação.
Em segundo lugar, temos que admitir que o texto de
Gênesis 6 apresenta a Yahweh como um Deus participativo e interativo com
sua Criação. Note que o arrependimento divino não acontece no texto
como uma surpresa: Deus já havia sido apresentado como desagradado (v.3)
e que após seu arrependimento Ele decretou o juízo que entendeu ser
necessário para a ocasião da humanidade (v.7). Há clara idéia de
participação e interatividade divina nesse texto e tal relato não pode
ser minimizado a partir do todo das escrituras. Os defensores da
impassividade de Deus verão nesse texto o vigo do juízo e a manutenção
da promessa de Gn.3.15 em Noé, verdades que não ousamos negar. Os
defensores da visão mais aberta, dirão que nesse texto vemos a interação
de Deus e sua mudança de opinião ante a situação da humanidade, verdade
que não aceitamos por completo, mas não ousamos descartar por completo.
O fato é que entendo que o texto de Gênesis 6 demonstra ambas as idéias
concomitantemente: Ainda que sua promessa seria cumprida, que Seu
propósito Redentor não se tenha alterado, que Deus não se mostrou mal
planejador Ele muda de atitude em relação a humanidade. A expressão “O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal”
(v.3) é uma clara demonstração desse fato, e provavelmente a primeira
medida de Deus sobre a crescente perversidade da humanidade.
Em terceiro lugar, devemos lembrar que o termo hebraico por trás da tradução portuguesa para “arrependimento” é bem mais abrangente do que o que entendemos com o termo em português. O termo hebraico usado aqui é “nacham” e tem um dos três significados básicos dependendo do contexto:
- Experimentar pesar ou sofrimento emocional: Esse sentido é relativamente comum e eventualmente é demonstrado no texto hebraico no passado: “Então, o povo teve compaixão de Benjamim, porquanto o SENHOR tinha feito brecha nas tribos de Israel” (Jz.21.15; cf. Jz.21.15; 1Sm.15.11,35; Jó.42.6; Jr.31.19).
- Consolar ou ser consolado: Esse uso é relativamente freqüente no AT e claramente encontrado na literatura Mosaica: “E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque foi consolado depois da morte de sua mãe” (Gn.24.67; cf. 27.42; 37.35; 50.21; 38:12; 2Sm.13.39; 77.3; Sl.1.24; Is.1.24; Jr.31.15; Ez.14.22; 31.16; 32.31)
- Arrepender-se ou mudar de mente: Em alguns textos não teologicamente discutidos a idéia de mudança de mente é encontrado, mas com alguma dificuldade: “Tendo Faraó deixado ir o povo, Deus não o levou pelo caminho da terra dos filisteus, posto que mais perto, pois disse: Para que, porventura, o povo não se arrependa, vendo a guerra, e torne ao Egito” (Ex.13.17; cf.Dt.32.36; )
É importante dizer que o sentido básico do termo, e certamente mais freqüente no AT é o de “consolar”.
Das 108x que é usado no AT pelo menos em 66x a idéia está relacionada
com o consolo. Apesar de o termo ter conotações de arrependimento, mesmo
que aplicado a seres humanos, esse não é o termo normalmente utilizado
para isso. Normalmente o AT usa o termo “shuwb”, que tem por
idéia básica o voltar-se (Gn.3.19; 8.12; 18.14), para descrever a idéia
do arrependimento como mudança de comportamento e atitude (Gn.27.45;
Ez.14.6).
Tendo observado isso, é verificável que o sentido de “consolo”
não é contextualmente aceitável em Gn.6 ao passo que a idéia de
arrependimento e pesar são as mais indicadas para o texto e a primeira
certamente tem sido favorecida largamente nas versões modernas das
escrituras, seja em inglês (ASV, KJV) ou em português (ACF, ARA, ARC,
NVI), entretanto, não tem sido a opção unânime. Por exemplo, a NIV,
versão inglesa da Nova Versão Internacional, optou por assim verter o
texto: “O Senhor se afligiu por ter feito o homem na terra”. A NET Bible, por sua vez, preferiu: “O Senhor se lamentou de ter feito o homem sobre a terra”. Essas duas leituras além de serem lexicograficamente possíveis, parecem contextualmente mais aceitáveis.
É bem provável que toda essa discussão tenha nascido na má
compreensão do termo hebraico e do termo latino visto na Vulgata. De
modo muito interessante, a Vulgata usou o termo “paeniteo” que também carrega a idéia de “pesar” e “arrependimento”[13].
Entretanto, nem o inglês nem o português tem um termo que lhe seja
equivalente e por isso, sempre que passamos por esse texto precisamos
investir na explicação do termo. Considerando que o termo hebraico pode
ser entendido como uma expressão de caráter emocional, e que o contexto é
favorável a essa leitura, entendo que tanto a NET Bible como a NIV são
representações mais exatas para se descrever o texto.
Aliás, é importante notar que Moisés também usa o termo “’’atsab”
traduzido por pesar em português. A idéia do termo é claramente a
demonstração de dor e sofrimento, que em Gn.6.6 descreve o coração (hb. leb) do próprio Deus. Sobre isso, Sailhamer afirma:
“Ao tornar Deus o sujeito dessa do verbo no verso 6, o autor nos demonstra que o pesar e o sofrimento sobre os pecados dos seres humanos não era algo que apenas os homens sentiam. O próprio Deus lamentou pelo pecado do homem (v.7)[14]”
Derek Kidner sobre esse texto afirma:
“Esta é a maneira de falar do Velho Testamento, em que emprega as expressões mais ousadas, contrabalanceadas em outros lugares, se necessário, mas não enfraquecidas. A palavra pesou tem afinidades com as palavras aflição e fadiga de 3.16, 17. Agora Deus sofre por causa do homem[15]”
Ernest Kevan quando fala sobre seu entendimento desse texto, afirma:
“O Deus revelado pelas escrituras é capaz de sentir tristeza e de ser entristecido. Ele tem reações reais para com a conduta humana. Não obstante, é impossível conceber o Deus onisciente a lamentar-se por algum falso movimento por ele feito. O arrependimento de Deus não é uma alteração quanto aos propósitos, e sim, uma mudança de atitude[16]”
Diante dessas considerações fica evidente que a Imutabilidade do
Propósito de Deus foi preservado na história do dilúvio sem que isso
excluísse a idéia de Interação de Deus com Sua Criação por seu
sofrimento emocional e pesar, e, isso é plenamente verificável pelos
termos hebraico utilizados no próprio texto.
…
3. Conclusão
Portanto, diante da Plena Imutabilidade de Deus e de sua Participação
ativa na história do homem, entendemos que em Gênesis 6, Moisés relata o
sofrimento divino em relação a maldade da humanidade. Isso, todavia,
não fala sobre a alteração divina de Seu Propósito, Vontade, Caráter ou
Ser, mas fala de sua Interação com Sua Criação: Deus lamentou pelo
desenvolvimento da maldade na Sua Criação e isso lhe pesou no coração,
ou seja, o desagradou.
[1] BERKHOF, Louis, Teologia Sistemática. Pp.58
[2] STRONG, Augustus Hopkins, Systematic Theology, Vol.I, pp.257.
[3] CHEUNG, Vincent, Systematic Theology. Pp.49 (material não publicado).
[4] CHAFER, Lewis Sperry, Teologia Sistemática. Vol.1, pp.242.
[5] THIESSEN, Henry Clarence, Palestras em Teologia Sistemática. Pp.80.
[6] CLARKE, Gordon, Attributes, the Divine. Pp.78-9. IN: RYRIE, Charles, Teologia Básica, pp.45.
[7] RYRIE, Charles, Teologia Básica, pp.45
[8] Idéia adaptada de GEISLER, Norman; HOWE, Thomas, Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia. Pp.92-3
[9] BERKHOF, Louis, Teologia Sistemática. Pp.23-4.
[10] CALVINO, João. As institutas da religião cristã.
[11] Idem, ibid.
[12] CALVINO, João, Commentary on Genesis. (http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
[13] A LXX utiliza “enthuméomai”
que descreve uma atitude das faculdades mentais, como considerar,
avaliar. Em uma leitura mais idiomática, a tradução da LXX seria: “Considerou Deus sobre ter feito o homem sobre a terra e se desagradou”
[14] SAILHAMER, John, Genesis. Pp.81.
[15] KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.81.
[16] KEVAN, E.F., Gênesis – Novo Comentário da Bíblia. Vol.1, pp.90.
Fonte: Teologando
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