segunda-feira, 14 de maio de 2012

Livro: "Uma Ortodoxia Generosa" - Resenha

Por Claudia Kriguer
Queridas amigas, este texto é um pouco diferente dos artigos normais. Ele é o resultado da leitura comparada de dois autores sobre o mesmo tema: o que é o ponto central do verdadeiro Evangelho. O que tornou tudo interessante é que cem anos separam o emergente e pós-moderno Brian McLaren do pensador inglês G. K. Chesterton. Mas, como afirmou oQohelet, “Nada há de novo debaixo do sol!”. Leia com atenção e observe quantos temas atuais recebem uma abordagem sutilmente distorcida em nome do amor cristão. Uma Ortodoxia Generosa se tornou best sellercristão da noite para o dia, tal como o aclamado A Cabana. Por isso, convido-as a que exerçam seu discernimento, concordem, discordem, mas não deixem de avaliar tudo à luz das Escrituras, como certamente faria a nossa querida “mestra” Priscila. Bom “divertimento”.
Resenha de Uma Ortodoxia Generosa:  a Igreja em tempos de pós-modernidade.
Brian McLaren. Brasília: Editora Palavra, 2007.  328 p.

Este foi um dos livros mais difíceis de ler. Não que apresente linguagem complicada ou que tenha sido mal escrito. Pelo contrário, McLaren se provou um autor de qualidade superior, apresentando um texto bem amarrado e que provoca curiosidade com respeito às suas afirmações e conclusões. Ele faz jus à sua profissão pregressa de professor universitário de literatura, a qual, em minha modesta opinião, nunca deveria ter deixado em razão do pastorado.
McLaren é escritor articulado e inteligente; é bom observador e trata de forma analítica as questões abordadas. Infelizmente, sua prédica é grandemente prejudicada por suas premissas. O autor é consistentemente crítico com tudo o que possa representar o status quo do cristianismo evangélico conservador e é sistematicamente aberto a tudo que implique uma reação contrária ao establishmentcristão ortodoxo. Em suma, ele pode ser considerado um protótipo do pensamento emergente dentro dos arraiais evangélicos. O que torna o livro difícil de ler diz respeito a uns poucos aspectos nos quais a sua crítica aos cristãos conservadores se faz justa e à massiva quantidade de acusações dirigidas contra estes, que se provam insustentáveis ou injustas. A certa altura, alguns trechos chegam a parecer lamúrias de uma tia velha e amargurada com a vida (ver Introdução).

Em Uma Ortodoxia Generosa pode-se detectar um homem em busca do ideal do cristianismo genuíno. Este é um dos méritos do autor e também o seu calvário. McLaren se considera um explorador de possibilidades (p. 31) e procede a sua busca pela verdade a partir das lentes humanistas, menosprezando a perspectiva bíblica e aplicando a dialética pós-moderna. Ele se dispõe a analisar os movimentos religiosos em suas diversas vertentes a fim de encontrar o que de melhor cada um deles pode oferecer segundo o seu próprio entendimento do ideal cristão:
Esta ortodoxia generosa não significa simples fusão [...] de duas escolas de pensamento. Ela discorda de ambas, com respeito “a visão de certeza e de conhecimento que liberais e evangélicos sustentam em comum”, uma visão que Grenz descreve como “produzida [...] por pressuposições modernistas”.  [Ela] deve “levar a sério a problemática pós moderna [...] o caminho adiante para os evangélicos é o de liderar a renovação do ‘centro’ teológico que possa fazer face aos desafios da situação pós-moderna na qual a igreja agora se encontra” (p. 31).
A partir daí, ele propõe um novo padrão de cristianismo, o qual, segundo sua perspectiva, estaria mais de acordo com aquele desejado por Jesus Cristo (cf. p. 29); isto é o que ele chama de “ortodoxia de opinião acumulada” (p. 35), que vem para corrigir e substituir as “distintivas doutrinárias”, sem sepultá-las, mas “para colocá-las em seu lugar marginal” (p. 39).  Entretanto, ele peca na estratégia: suas avaliações são parciais e traem suas premissas teológicas e o sistema interpretativo por ele adotado.
Para Brian McLaren, a verdadeira ortodoxia deve ser justificada pela ortopraxia: há um constante intercâmbio entre estes conceitos no texto, o que não seria um problema se ele considerasse como válida apenas a ortopraxia derivada do pensamento ortodoxo, isto é, como resultado do coração convertido ao Jesus bíblico e que produz frutos mediante a ação santificadora do Espírito Santo.  Aparentemente esta não é a tese do autor. Em sua proposta de “Ortodoxia Generosa”, a ortopraxia tem vida própria. Isso se verifica nos exemplos citados de pessoas que não são teologicamente ortodoxas (nem mesmo cristãs), mas que ele considera como parte do “arraial” cristão e se tornaram incluídas por manterem uma prática “cristã” (ver a citação de Gandhi, Madre Tereza de Calcutá e outros).  É um verdadeiro exemplo do rabo que abana o cachorro.
O fator analítico é um aspecto positivo do livro: a Igreja de Cristo precisa de mais pensadores, pessoas capazes de perceber o fluxo dos movimentos e emitirem pareceres objetivos sobre seus possíveis desdobramentos, à luz das Escrituras. Infelizmente, a análise de McLaren, por mais que reivindique generosidade, é uma análise comprometida, tendenciosa, subjetiva. Isto, porém, faz jus à proposta da obra: McLaren, coerente com a pós-modernidade emergente, define a ortodoxia ideal como sendo algo de cunho individual. Após ilustrar a experiência do conhecimento teológico como altamente sensorial, ele afirma:
[...] a ortodoxia neste livro é vista como um tipo de crença internalizada, tácita e pessoal, que se torna parte de você em tal nível que, uma vez assimilada, pouco será necessário se pensar nela… A ortodoxia neste livro é igualmente alcançada na prática (ortopraxia) do amor a Deus e a toda a criação divina (p. 40).
Cada um dos capítulos tem por objetivo justificar a opção “generosa” do autor, mediante a verificação (ainda que superficial, como o próprio autor reconhece) do valor de cada “experiência religiosa”, independente das bases teológicas das crenças ou movimentos. Em seu padrão “generoso”, McLaren estendeu sua análise para muito além das “cercas” tradicionalmente consideradas como o “meio evangélico”, na tentativa de demonstrar ter mente e coração corretamente abertos para os benefícios da diversidade do pensamento religioso. Ele diz:
Estamos aqui em uma missão para juntar forças com Deus para trazer bênção divina a você, quem quer que você seja, e seja o que for que você acredite e, se você quiser se juntar a nós nessa missão e à fé que a cria e sustenta, seja bem-vindo (p. 246).
Com isso, fica óbvio que o autor, que se autodenomina “pós-fundamentalista” (p. 202), dispõe-se a mostrar um caminho alternativo para minimizar as diferenças gritantes causadas por divergências irreconciliáveis (doutrinárias, na maioria dos casos) e o faz protestando a necessidade de se repensar a prática religiosa cristã evangélica por meio de outros filtros que não as tradicionais barreiras que os demais cristãos (especialmente os protestantes ortodoxos tradicionais, fundamentalistas, aos quais ele pinta como ferrenhos defensores de um exclusivismo elitista não encontrado nas Escrituras) apresentam como padrão de crença e comportamento.
A palavra-chave para este caminho é “tolerância”. Um exemplo disso é quando McLaren, em sua apologia sobre o aspecto católico (universal) da Igreja, deixa claro que estaremos na contramão do intento divino (a unidade eclesial acima de tudo) enquanto nos comportarmos de forma intolerante para com nossos “irmãos separados” (p. 244, 245). A tolerância deve prevalecer, ainda que à custa da verdade absoluta e o objetivo da fé missional é superar as distinções doutrinárias:
Quando você escolhe ambos/e não ou/ou em se tratando de catolicismo e protestantismo, você também aprende a viver com a tensão dinâmica em outras áreas, resiste à tentação reducionista de sempre escolher somente uma coisa em detrimento de outra e aprende a se apegar a duas ou mais coisas quando necessário (grifo meu).
O ponto convergente de todos os vetores religiosos para McLaren é o que ele mesmo chama de “tensão dinâmica” (p. 230, 231), e a proposta emergente para a solução desta tensão está na suavização das fronteiras entre os diversos contingentes religiosos e no enfoque positivo no potencial que o esforço comunitário entre eles pode gerar:
Com essa compreensão (do significado de apostolado), nos importamos menos se linhagem, ritos, doutrinas, estruturas e terminologias estão corretas, e mais se ações, serviço, iniciativas, bondade e eficácias são boas (p. 245).
No parecer pragmático de McLaren, nós, os protestantes fundamentalistas somos a causa do cismapor nos vermos como a “versão nova e melhorada do cristianismo, ou até mesmo como a única versão legítima” (p. 247), e tal atitude superior rebaixa os outros grupos cristãos, “relegando-os ao status de fingidos desprezados e de perdedores comprometidos”. Os ortodoxos elitistas, então, necessitam desenvolver uma postura de tolerância para com os demais grupos teológicos. É óbvio que ele está correto ao incentivar o respeito mútuo (muitas vezes não cultivado entre grupos de cores distintas) conforme o proposto por Voltaire em seu “Tratado de Tolerância” dirigido aos católicos perseguidores da Igreja. Este, porém, se mostrou muito mais lúcido em seus termos, não pretendendo tornar ambos os grupos em uma só corporação, pois reconhecia a existência de diferenças teológicas irreconciliáveis entre ambas as religiões.[1] O “Tratado de Tolerância” de McLaren extrapola os limites do razoável quando encontra em toda e qualquer coloração confessional algo que possa ser considerado “legítimo” para a adoção tolerante (ver o conceito de “católico” p. 246 a 248). O preço desta “adoção libertina” é a negação de princípios teológicos reguladores estabelecidos nas Escrituras. Estes princípios divinos se constituem per se de barreiras bíblico-teológicas intransponíveis e, por natureza, não preconizam tamanha “permeabilidade” entre as crenças, especialmente no que concerne ao conceito de “salvação e perdição eterna”.
Para resolver este “problema” que é inerente ao verdadeiro Evangelho, o autor teve que recorrer ao que parece ser uma reinvenção dos critérios de “ortodoxia”. Ele foi demolindo, uma a uma, as profundas estruturas do pensamento protestante “convencional” ou “conservador” (uso este termo no mesmo sentido que o autor, ciente de que é uma generalização inadequada) e impondo, de forma sutil e sedutora, a forma “emergente” de compreensão teológica. Estabelecendo um contraste entre a “virulência” discriminante do pensamento ortodoxo conservador e a “docilidade” agregadora da teologia emergente, McLaren sutilmente (às vezes nem tanto) procura levar os leitores ao convencimento de que esta é a solução para as questões da intolerância religiosa que tanto atrapalham o ser humano, tão carente de amor e aceitação, de se achegar à comunidade cristã.
Algumas das estruturas fundamentais do Cristianismo a que a “empresa de demolição emergente” de McLaren direcionou sua bola são a Teologia Própria, a Cristologia, a Bibliologia, a Soteriologia e a Antropologia bíblica. Só a análise e a refutação do pensamento teológico de McLaren sobre estes temas dariam um livro apologético muito interessante. Ficou claro que, para viabilizar suas propostas de democratização, ele precisou redimensionar alguns destes absolutos e propor como sistema hermenêutico alternativo: a “teologia narrativa”, na qual o leitor tem papel preponderante na determinação do significado e relevância do texto.
McLaren procurou alicerçar sua postura crítica em excertos do livro de G. K. Chesterton, Ortodoxia,publicado há pouco mais de 100 anos. Na opinião desta autora, McLaren correu um risco enorme ao escolher Chesterton como referência, pois embora a proposta de Chesterton seja igualmente tecer uma crítica ao pensamento dominante da época, tanto o alvo de sua análise como suas conclusões são bem distintos das do autor americano. Chesterton se concentra na refutação ao pensamento racionalista e sua atitude crítica para com os “pobres cristãos descerebrados”. O que McLaren e Chesterton têm em comum é o amor à bandeira do pensamento analítico: ainda assim, as premissas da liberdade para a condução do pensamento são distintas (cf. Ortodoxia, p. 56, 57 – Chesterton alerta para o risco do pluralismo libertário desembocar em nihilismo ideológico, risco esse que creio McLaren corre).
A Ortodoxia de Chesterton não visa propor novos modelos para a fé cristã. Pelo contrário, ele afirma e defende a existência de uma coerência intrínseca do antigo Evangelho. Ele comprova, por meio de argumentação lógica, a presença de um arcabouço teológico sólido e distintivo, o qual os pensadores do seu tempo consideravam inexistente ou no máximo fruto de articulação frouxa de ideais bem-intencionados, mas desprovidos de funcionalidade no mundo racionalista-agnóstico de então. McLaren está na contramão deste raciocínio, advogando a abolição do pensamento objetivo e sistemático em favor do diálogo subjetivo encarnacional (p. 284) e na supervalorização da “mística” cristã.
Chesteston testemunha a sua convicção da existência de uma identidade definida do Evangelho, que deveria ser definida não a partir da experiência subjetiva e individual, mas da articulação acadêmica da revelação objetiva de Deus como resposta aos apelos e inconsistências do pensamento humano, o que ele chama de “verdade objetiva” (Ortodoxia, p. 61). Só esta afirmação já se constituiria em refutação suficiente à proposta “generosa” de McLaren, conforme citação de um dos seus mentores, Brueggeman, acerca da “verdade reduzida” pela excessiva formulação teológica:
O que é necessário, ele diz, é um novo tipo de pregação, uma pregação que abra “as boas novas do evangelho a modos alternativos de discurso”, ou seja, as torne [...] “livres da concretude”. Porque o “discurso reduzido leva a vidas reduzidas” (p. 162).
Esta abertura às várias formas de expressão dá vazão para a ênfase mística do movimento emergente, do qual McLaren é expoente. Apesar dele se reportar à mística da Ortodoxia de Chesterton como base para sua proposta, ambas são fundamentalmente opostas em suas abordagens.
Chesterton contrapõe a loucura do racionalismo herdeiro do iluminismo à real racionalidade da mística cristã: defende que o pensamento empirista inaugurado pelo iluminismo e perpetuado em suas vertentes positivistas não é nem de perto o representante autorizado da Verdade e nem o sistema adequado para descobri-la (cf capítulo 1: O Maníaco). A mística de Chesterton é representada pelo valor da denominada “imaginação mística” (a fé na verdade de Cristo, que ele ao longo do livro acaba por concluir como sendo o verdadeiro pensamento lógico) em contrapartida à ressequida lógica racionalista (ou ausência dela) defendida pelo pensamento secular. McLaren utiliza-se mal do texto de “O Maníaco” para justificar sua opção pela “não-organização da teologia”, argumentando que Chesterton (e C. S. Lewis) eram favoráveis a uma abordagem poética, não sistemática, e citando o teólogo neo-ortodoxo Karl Barth[2] como opinião final sobre a inconsistência de se tentar sistematizar algo que é intrinsecamente não-tangível, o pensamento de Deus. (Uma Nova Ortodoxia, p. 165-169).Eis sua conclusão:
No cerne do projeto teológico do mundo moderno estava a suposição de que é possível e desejávelreduzir toda a verdade revelada a proposições e organizar estas proposições em um esboço que exaustivamente contenha e sirva como melhor veículo para a verdade… Mas assim como catedrais medievais servem mais como museus de história e arte do que como casas de adoração, Barth anteviu o dia quando o tipo comum de teologia sistemática se tornaria um artefato histórico. Abstrações em prosa não contém ou comunicam a verdade de Deus tão bem como pensávamos que comunicavam (p. 169).
Ora, Chesterton nunca afirmou ser contra a sistematização teológica. Ele apenas afirma que a racionalização levada a extremos é perniciosa, tal como quando se espera ser salvo à parte da vontade e da fé (Ortodoxia, p.38). Nisto consiste a mística de Chesterton. Atribuindo a ele sua compreensão particular de “mística”, McLaren propõe uma nova matriz dialógica, a elaboração poética da teologia, contemplando um aspecto mais sistêmico, menos rígido, da busca da verdade. A negação absoluta do valor da sistematização das verdades constitui-se em um excesso em que McLaren incorreu. Ao chamá-las de “bitoladas, conservadoras e críticas” (p. 172), ele as classificou como inadequadas para o desempenho do papel a que se prestam: o balizamento do pensamento cristão ao longo das eras, conforme o entendimento concedido pelo Espírito Santo, em maior ou menor grau conforme a circunstância, com o propósito de ajudar o povo de Deus a conhecer melhor sua regra de fé.
Há que se reconhecer o valor de sua crítica no que tange às fortalezas teológicas ortodoxas que se transformam em barreiras instransponíveis, nas quais seus adeptos se enclausuram não dispostos a estender a “destra da comunhão” aos irmãos que divergem em um ou outro ponto de vista não cardeal da fé. Mas a demolição das claras fronteiras teológicas que a própria Escritura determina, em nome da generosidade do pensamento plural, não é a solução para isto. A abordagem da Ortodoxia Generosapara o entendimento das Escrituras é menos do que objetiva porque enfatiza a interpretação poético-mística, altamente subjetiva e sujeita a distorções. McLaren corre o risco de confundir estilo literário com a metodologia necessária para obter o conteúdo teológico desejado pelo autor.
No capítulo “Por que sou bíblico?”, McLaren revela sua posição com respeito à forma de Deus interagir com os homens na história a partir da pressuposição de que as Escrituras não registraram necessariamente os fatos (p. 186). Como recurso, ele advoga a retomada da “tradição católica” como uma das lentes para a compreensão das Escrituras, em contrapartida ao que ele considera “um tipo de biblicismo sufocante” (p. 250), posição um tanto estranha para quem reage tão negativamente à idéia de um balizamento “imposto” pelo sistema teológico ortodoxo, antigo e refratário às inovações desejadas por ele.
A afirmação de McLaren sobre o desprezo sistemático à tradição (católica, neste caso) por uma ala protestante reacionária e radical, que se recusa a ser condescendente com os “irmãos”, demonstra o quão pouco ele conhece a respeito do que o papa Bento XVI tem dito sobre os “irmãos protestantes”[3] ou que ele assumiu uma postura diletante sobre o assunto a fim de apoiar suas convicções. McLaren assim descreve a intolerância dos reformadores:
Esses movimentos de renovação (as reformas protestantes) produziram assim um tipo de elitismo que dizia, “somos os únicos que estamos certos. Todos os que não se unirem a nós estão errados, fora, são sub ou não cristãos” (p.247).
A solução da Ortodoxia Generosa para a intolerância protestante se propõe desta forma:
A fé cristã, eu estou propondo, deveria (em nome de Jesus Cristo) se tornar um amigo acolhedor das outras religiões do mundo, e não uma ameaça. Deveríamos ser vistos como um protetor de suas heranças, um defensor de inimigos comuns, não um dos inimigos [...] Há um problema: há muita coisa ruim nas outras religiões [...] Há muita coisa ruim também na nossa (p 281).
A continuação deste parágrafo traduz com clareza a intenção do autor em harmonizar os distintos pensamentos religiosos ao afirmar que eles são apenas facetas diferentes de um mesmo prisma teológico (cf. p. 282, a expressão “busquemos encorajar o crescimento do trigo em todas as religiões, incluindo a nossa, deixando com Deus a colheita”). É certo que se pode encontrar lampejos de verdade em outras religiões, mas é ir longe demais afirmar que isso per se produz condições de salvação para alguém a parte da revelação de Cristo. Não se devem confundir as questões relativas ao colonialismo cultural corretamente abordadas por McLaren no capítulo sobre o encarnacionismo (Por que sou incarnacional?) com aquilo que a Escritura afirma serem condições inegociáveis relativas tanto à salvação eterna quanto ao estilo de vida dos convertidos ao Evangelho supra e contra cultural de Jesus Cristo.
Outro aspecto interessante para a investigação é a posição defendida por Brian McLaren no que tange o escopo da ação soberana de Deus. Ele afirma expressamente que a ortodoxia conservadora (especificamente a ala fundamentalista do calvinismo, p. 204) modelou um “deus” distinto do Deus verdadeiro em seus atributos e perfeições, o qual, segundo a teologia de McLaren, teria o perfil do Deus B (cf. o capítulo Jesus e o Deus B). A distorção afeta aspectos como a compreensão da predestinação e o cumprimento do plano divino na vida dos seus filhos. A visão ortodoxa é classificada por McLaren como determinista:
Embora compreensões acadêmicas da predestinação estejam esplendidamente atenuadas, a visão “popular” geralmente afirma que Deus é o jogador de xadrez, nós somos as peças e vamos para onde somos deslocados. Se Deus quiser tirar-nos do tabuleiro e nos colocar no forno, lá vamos nós, e não há nada que possamos fazer a respeito.  Essa visão da realidade vincula muito (não o todo) do calvinismo atual a um modo de pensar mais abrangente chamado determinismo, que afirma que, em última análise, nossa liberdade é uma ilusão, e que somos apenas marionetes, de um tipo ou de outro (p.204).
Esta visão reducionista sobre a ação soberana divina atribuída aos pensadores herdeiros do calvinismo traduz, na verdade, a compreensão do próprio movimento emergente acerca do controle exercido por Deus nas vidas humanas. Adeptos do Teísmo Aberto, que prega o desenvolvimento simultâneo e mutuamente responsivo das relações homem-Deus, os emergentes têm dificuldade com questões que contemplam a ação soberana e autônoma de um Deus que dirige os destinos da humanidade conforme um plano pré-existente. Surgem problemas de harmonização concernentes ao sofrimento e o conceito de amor divino por eles desenvolvido (cf. Jesus e o Deus B)[4]. Deus se tornou um manipulador de marionetes, pois o determinismo, segundo McLaren, não deixa espaço para a relação amorosa entre criatura e Criador (p. 206). Tudo é apresentado como um sistema teológico fechado, hermético, mecânico, resultante da combinação da frieza de Teodoro de Beza e seus asseclas e da lógica newtoniana associada ao racionalismo de Descartes (p. 205). Para o autor, não há lugar para a participação consciente do homem na obra divina e ainda há que se lidar com a questão da responsabilidade moral.
A “rota de escape” proposta por McLaren aos defensores do assim chamado determinismo cristão é uma tangente: a revisão periódica dos conceitos, baseado em um dos slogans da Reforma protestante“theologia reformata et semper reformanda” (p. 208). Citando John Franke, ele sugere que “o processo de reforma a partir da perspectiva reformada não é, nem nunca pode ser, algo definitivo e que apela à perpetuidade como a posição ‘verdadeiramente reformada’ ” (p. 209). Trata-s de um verdadeiro absurdo histórico, pois a fé reformada tem-se mantido fiel e constante em suas convicções teológicas ao longo da maior parte de sua trajetória na História Eclesiástica. McLaren, como bom adepto do Teísmo Aberto, não oferece nenhuma refutação bíblica convincente ao determinismo ortodoxo; apenas o responsabiliza por causar certa indigestão teológica no povo e o incita a resolver o suposto “problema” por ele criado.
Por fim, a ênfase que McLaren dá ao amor a Deus e ao próximo precisa ser compreendida dentro do escopo bíblico. Ele se refere à constante preocupação dos fundamentalistas em buscar um perfil do ser divino a ser adorado definido pela ortodoxia antes de se preocuparem com os atos de amor em si e rejeita esta postura como excessivamente racional e sugerindo que o conhecimento de Deus se processa empiricamente, a partir da iniciativa de amar, a “aventura do amor” (p. 203).
Apesar de este ser um discurso interessante e sedutor, apresenta inúmeros problemas teológicos, inconsistentes com a revelação escriturística (cf. Jesus e o Deus B). Em tese, a idéia provoca nas pessoas a falsa sensação de bem-estar de não terem que se preocupar com “detalhes irrelevantes” como a identidade do ser divino a ser adorado. Esta teoria se contrapõe diretamente ao ensino das Escrituras e é altamente perniciosa.
A Bíblia ensina que existe um único Deus digno de adoração (cf. Dt 6.4-5), que se revelou com um nome específico (Ex 3.14) e que ninguém pode chegar a conhecê-lo sem que este se revele em graça e verdade, na pessoa do seu Filho, Jesus Cristo, que afirmou: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14.6) e mediante o ministério do Espírito Santo (cf. Rm 8.14-16). McLaren, coerente com a visão antropocêntrica emergente, abre mão desta exclusividade quando propõe que a simples prática de um amor bem-intencionado e alienado leva uma pessoa a conhecer ao Deus verdadeiro, esquecendo-se também do ensino paulino em Romanos 3.11-18 sobre a impossibilidade de o homem natural buscá-lo e de fazer o bem desinteressado.
As afirmações de McLaren também decorrem da visão distorcida que ele tem do problema real da humanidade. A noção antropológica do autor é corrompida, pois pressupõe o ser humano como vítima de si mesmo e que os engajamentos ortodoxos, severos demais, desprezam este sofrimento quando se preocupam em julgar e lutar contra a maldade humana. Ele diz:
Infelizmente, muitos contra quem estamos lutando no momento [...] não são o verdadeiro inimigo, e muitos a favor de quem estamos lutando não são a verdadeira luta. [...] Essas lutas são fúteis. Também estamos concentrados em lutar contra os sintomas como o aborto, a promiscuidade (hetero e homossexual), o divórcio e a profanação. [...] Essas coisas, no entanto, não são a doença. São em muitos sentidos os sintomas da enfermidade que nós inadvertidamente temos a tendência de sustentar, auxiliar e encorajar, defender, proteger, batizar e lutar a favor – um sistema adoecido pelo consumismo, pela cobiça, pelo medo, pela violência, pela fé equivocada (p. 203, 204).
Em momento algum o autor se reporta ao pecado original e à completa corrupção humana decorrente como sendo a raiz dos males humanos. Já nas primeiras menções ao conhecimento de Cristo, ele redefine o conceito de pecado: “Significa que as pessoas estão deixando a dança” (p. 66); aquela parceria cósmica entre Deus e o homem que deveria ser uma eterna celebração foi abandonada e será restaurada em termos universais, segundo McLaren (p. 67). Aparentemente não há responsabilidade individual pelo erro (a não ser para o ortodoxo, o desmancha-prazeres cristão par excellence); tudo se resume em uma grande camaradagem entre o Jesus ortodoxo oriental e a criação.[5] Assim, pecado é não amar, é discriminar, ainda que haja discrepâncias vitais entre o estilo de vida da pessoa e o padrão de Deus. Jesus Cristo é um facilitador do estilo de vida da pobre humanidade sofredora: não há culpa moral individual a ser paga e sim necessidades a serem supridas e a redenção fica reduzida às questões imediatas desta terra, o que promove uma forte ênfase no evangelho social (cf. p. 73).
CONCLUSÃO
A conclusão desta autora é que a Uma Ortodoxia Generosa de Brian McLaren e, por extensão, da comunidade emergente é altamente perniciosa à fé evangélica. Infelizmente, no Brasil a teologia emergente tem conquistado adeptos entre aqueles que se dizem decepcionados com o evangelho tradicional como o prefácio do Pr. Ricardo Gondim deixa transparecer.
A avalanche de publicação de literatura emergente, representada por autores como Philip Yancey, Dallas Willard e Brenan Manning, tem “feito a cabeça” daqueles que são classificados como os “não-conformados com o status quo religioso” e procuram uma alternativa para si. Sites como Renovatio Café, Youth Specialties Emergent Village têm aberto fóruns para debates e publicado artigos cuja pregação emergente tem decretado a morte do protestantismo conservador ortodoxo por falência múltipla de órgãos. A proposta emergente se diz vanguardista e isto em si é suficientemente atraente para a camada mais jovem da população cristã, sempre disposta a romper com paradigmas antigos em nome de uma nova e necessária reforma (cf. as afirmações do Pr. Ed René Kivitz sobre “um outro Deus” em seu livro Outra Espiritualidade). Assim, o contato com publicações do cunho de “uma nova ortodoxia”  deve ser priorizado pelos teólogos conservadores brasileiros, a fim destes proverem refutações claras e acessíveis à população cristã média contra as sutilezas da teologia emergente, que se faz atraente em especial ao aos que sofreram algum tipo de rejeição entre os protestantes “de direita”.
Embora alguns dos pontos de vista de McLaren procedam e devam receber a merecida atenção e consideração das cabeças pensantes do meio cristão evangélico (e.g. o cuidado necessário com o planeta, guardadas as devidas proporções – cf. “Por que sou verde?” e até mesmo a revisão de posturas de intolerância que sabemos existir), entendo que, grosso modo, suas propostas estão em rota de colisão com o ensino procedente das Escrituras e devem ser refutados com o devido rigor. Creio também que a forma mais eficaz para proteger a Igreja da má influência de “livres-pensadores” como McLaren é a exposição clara e sistemática da Palavra de modo que mesmo os cristãos mais simples possam discernir entre a verdade e o erro e rejeitá-lo, ainda que este se apresente de forma sedutora e convincente, a exemplo de Uma Ortodoxia Generosa.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CHESTERTON, G. K., Ortodoxia, Mundo Cristão: São Paulo, 2008.
DEVER, Mark, Nove Marcas de uma Igreja saudável. Fiel: São José dos Campos, 2007.
JONES, Peter, Falsa identidade: conspiração para reinventar Jesus. Cultura Cristã: São Paulo, 2007.
VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância, Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, vol. 24. Escala: São Paulo.
www.renovatiocafe.com/index
www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070629_responsa-quaestiones_po.html

[1] VOLTAIRE, Tratado sobre a Tolerância, Grandes Obras do Pensamento Universal, v. 24. Escala: São Paulo, p. 39 e ss.
[2] É compreensível o fato de McLaren buscar apoio em Barth: o sistema hermenêutico neo-ortodoxo contempla a subjetividade da compreensão das Escrituras, as quais têm seu valor revelatório objetivo  diminuído em relação ao peso da “revelação” advinda de encontros subjetivos entre o homem e Deus. Os emergentes assumem a hermenêutica da “teologia narrativa”, a qual é fundamentalmente centrada no papel do leitor como quem define o grau de significância do texto, que é um dos eixos do pensamento pós-moderno.
[3] Congregação para a doutrina da fé, Respostas a questões relativas a alguns aspectos da doutrina sobre a  igreja (Quinta questão),
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070629_responsa-quaestiones_po.html
[4] Outro ponto importante a ser ressaltado é a visão de McLaren sobre a postura sexista que o uso do masculino nas Escrituras denota. É quase imperceptível, mas pode-se sentir McLaren “flertando com Sofia”; há qualquer coisa de gnóstico nestas colocações. Comparar com o capítulo 1 de “Falsa Identidade”, Peter Jones, Cultura Cristã.
[5] No capítulo “Os Sete Jesus que Conheci”, que considerei o mais pernicioso do livro, McLaren redefine Jesus Cristo a partir da experiência multissensorial subjetiva e das múltiplas percepções advindas  de cada grupo religioso. Ele compõe um quadro de Cristo a partir da compreensão humana, diminuindo o peso que a Revelação objetiva. Esta visão é complementada nos demais capítulos “Jesus seria um cristão?” e Jesus, Salvador do quê?” os quais comprovam a perspectiva cristológica e soteriológica  humanistas do autor. Partindo destes pressupostos, McLaren altera também a Teologia Própria, propondo uma releitura de Deus Pai à luz da revelação do Filho (p. 84).

Um comentário:

  1. Parabéns pela resenha!
    Extremamente inteligente e equilibrada!
    Precisamos desenvolver no Brasil esse espírito crítico que nos libertará do julgo ideológico norte americano, o qual nós mesmo nos impomos, ao recebermos tudo sem questionar nada!

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