Por Marcos Granconato
No capítulo 2, Paulo continua a narrativa, sempre com o propósito de defender sua autoridade apostólica e a liberdade cristã. O capítulo começa com a afirmação que, passados quatorze anos, ele foi novamente a Jerusalém. É difícil detectar o ponto de partida para a contagem desses quatorze anos. Pode-se contá-los tanto a partir de sua primeira visita àquela cidade (1.18-20), como a partir de sua conversão, sendo esta última hipótese a mais provável.
No v. 1 Paulo diz que foi a Jerusalém acompanhado de Barnabé. Sabe-se que ambos por esse tempo eram líderes na igreja de Antioquia (Atos 11.25-26; 13.1) e certamente partiram dali para Jerusalém. Paulo diz que Tito, um gentio convertido também os acompanhou. O apóstolo prossegue dizendo que a visita foi motivada por uma revelação e que, graças a ela, teve a oportunidade de expor o evangelho que pregava aos homens influentes da principal igreja da Judéia (v.2).
Esses detalhes se encaixam perfeitamente na narrativa de Atos. A revelação de que Paulo fala é descrita em Atos 11.27-30 e diz respeito a uma profecia de Ágabo que predisse uma grande fome que assolaria o mundo romano.[1] Em virtude dessa revelação, Paulo foi enviado com Barnabé a Jerusalém a fim de entregar uma oferta levantada em Antioquia para os crentes da Judéia (Veja tb. At 12.25). Conforme narrado em Gálatas, nessa ocasião Paulo não só realizou a entrega da oferta, mas também aproveitou a oportunidade para expor aos líderes da igreja em Jerusalém a mensagem que pregava aos gentios.
A fim de manter em mente o lugar que esses episódios ocupam na cronologia de Atos, é bom lembrar que tudo isso aconteceu antes da Primeira Viagem Missionária a qual redundou na implantação das igrejas da Galácia (At 13-14) e antes do Concílio de Jerusalém (At 15.1-30), ocorrido em 48 d.C.
Paulo realça, ainda no v. 2, que fez a exposição de sua mensagem “aos que pareciam mais influentes”. Ademais, deixa claro que agiu assim para não correr inutilmente. Isso tudo significa que Paulo se preocupava em manter clara a harmonia entre seus ensinos e os dos demais apóstolos.[2] Isso faria com que seus esforços não fossem inúteis, ou seja, evitaria as divisões e até apostasias que as disputas entre mestres invariavelmente trazem sobre a igreja do Senhor e que tornam o trabalho de alguns uma corrida vã.
O v. 2 mostra, portanto, quão importante é que quem trabalha na obra de Cristo nutra a unidade não só com os crentes comuns, mas principalmente com aqueles que desempenham na igreja uma função de alta responsabilidade. Ter a aprovação somente dos que não ocupam lugar de destaque dado por Deus, com desprezo em relação ao parecer dos líderes, dos mestres e dos que são realmente influentes na igreja torna o trabalho uma corrida inútil, destinada ao fracasso, uma vez que só produzirá divisões e discórdias. Trabalha, pois, em vão o obreiro que arranca os aplausos do povo, mas está em desacordo com os homens que Deus constituiu como colunas na sua igreja. Paulo sabia disso e, ainda que não estivesse sob a autoridade dos apóstolos de Jerusalém, buscou cuidadosamente e para o bem da Causa estar em harmonia com eles.
Nos vv. 3-5, Paulo mostra que os ataques que estava enfrentando por parte dos falsos mestres da Galácia não lhe eram novidade. Ele narra que em sua segunda visita a Jerusalém, Tito[3], apesar de ser grego, não foi obrigado a circuncidar-se (3). Esse fato tinha especial importância para o enfraquecimento das acusações dos mestres judaizantes, pois dava provas de que os apóstolos de Jerusalém, ao contrário do que aqueles falsos mestres diziam, não exigiam a circuncisão de convertidos gentios[4]. Paulo, assim, comprova ainda mais a harmonia entre seu evangelho e o dos apóstolos da Judéia. Isso corrobora a tese de que é um verdadeiro apóstolo e destrói a acusação de que pregava um cristianismo modificado por seus caprichos.
A questão da necessidade da circuncisão de Tito, conforme Paulo narra, foi levantada na ocasião por falsos irmãos (4). Aqui Paulo diz abertamente que quem defende a justificação pela prática da Lei não é crente. É claro que isso atingia diretamente os mestres judaizantes que estavam ensinando nas igrejas da Galácia. O alvo claro de Paulo em toda essa sessão é desmascarar esses homens.
O v. 4 mostra uma das estratégias de Satanás no uso de seus ministros para destruir a obra de Cristo. Em primeiro lugar eles se infiltram em nosso meio. Assim, cada crente deve estar alerta para o fato de que nem todos os que estão na igreja são irmãos de verdade. É comum incrédulos se fingirem de crentes para cumprirem os desígnios de Satanás no meio do povo de Deus. Tais pessoas são, portanto, muito perigosas (2Co 11.26; Fp 3.2-3) e o crente precisa de discernimento para detectá-las.
Uma das formas pelas quais podemos detectar essas pessoas encontra-se ainda no v. 4. Paulo deixa claro que os falsos irmãos se introduziram na igreja para “espionar” a liberdade dos crentes. Espionar é atividade própria de estrangeiros inimigos. O verbo sugere a idéia de espiar um território. Assim o espião é sempre um inimigo disfarçado que procura os pontos fracos do seu alvo a fim de cooperar com sua destruição. Em Jerusalém, os “espiões” procuravam encontrar dentro da igreja fraquezas na compreensão da liberdade conquistada por Cristo para os crentes. Fazendo pressões sobre esses pontos de maior fragilidade eles tinham como alvo destruir a liberdade cristã e tornar os crentes escravos da Lei.[5]
Toda essa estratégia usada pelos maus nos ajuda a detectar os inimigos de Cristo infiltrados entre os irmãos. Sempre que alguém no meio da igreja milita contra algo que Cristo conquistou para nós na cruz, certamente tal pessoa é um servo de Satanás a serviço de seu senhor no meio do povo de Deus. Exemplos do que Cristo conquistou para nós no Calvário, além da liberdade, são a alegria (Jo 7.38), a comunhão pacífica (Ef 2.14-16), o acesso a Deus (Hb 10.19-20) e o poder para uma vida de consagração (Rm 6.10-11; 2Co 5.15). Sempre que alguém, dentro da igreja, luta contra essas coisas, tal pessoa deve ser olhada com suspeita como um falso irmão infiltrado em nosso meio para destruir a obra do Mestre e, assim, cumprir os planos de Satanás.
O v. 5 deixa implícito que os falsos irmãos, além de tentar destruir o que Cristo conquistou para o seu povo também tentam se impor sobre o rebanho. Paulo dá a entender que os legalistas de Jerusalém queriam que ele e todos os crentes se sujeitassem às suas idéias (o paralelo com os legalistas que estavam na Galácia é óbvio, cf. 4.17; 6.12-13). É, de fato, traço típico dos falsos irmãos tentar ocupar posições de influência, de onde seus ataques podem ser feitos com maior eficácia (3Jo 9-10). O Apóstolo, porém, em nenhum momento se sujeitou a eles. Com isso ele buscava preservar a verdade do Evangelho. A verdade que o Apóstolo tem em mente aqui é a consubstanciada em 3.11.
Demonstrar que sua mensagem não lhe fora entregue por homem algum, mas sim pelo próprio Cristo, era fundamental para Paulo na defesa de seu apostolado (1.11-12). Por isso insiste em dizer que em sua segunda visita a Jerusalém, os apóstolos que ali estavam nada lhe acrescentaram (6). Com a expressão “quanto aos que pareciam influentes”, Paulo dá a entender que tem em mente outros líderes, pouco conhecidos por ele, além dos apóstolos. Ao mencionar tais homens e sua aparente autoridade, Paulo observa que a grandeza deles naquela igreja não o impressionava, pois, conforme lembra, “Deus não julga pela aparência”.
De fato, é comum na igreja vermos pessoas se destacando, tornando-se conhecidas e influentes, obtendo um lugar de proeminência no meio da irmandade, dando a todos a impressão de que são “grandes” e cheios de autoridade entre os crentes. Alguém assim pode impressionar os homens, mas não passar de uma figura desprezível aos olhos de Deus, alguém que até mesmo muito o aborrece com seus ares de orgulhoso, com sua preocupação em passar uma falsa imagem de santidade e zelo (Mt 6.16; 2Tm 3.1-5), e com sua incapacidade de aceitar qualquer autoridade sobre si. Paulo sabia que muitas vezes as aparências não correspondem aos fatos. Por isso, não se deixava levar pelo aspecto externo das coisas, sabendo que o justo Juiz julga de acordo com critérios que vão além das nossas possibilidades (1Sm 16.6-7; Is 11.1-4), o que também deveria nos conduzir a um cuidado maior com o que realmente somos e com o modo como tratamos as pessoas (Jo 7.24; Tg 2.1-10).
Paulo prossegue dizendo que a liderança da igreja em Jerusalém reconheceu seu apostolado como estando no mesmo nível do apostolado de Pedro, o apóstolo de maior destaque entre os Doze (7). A diferença entre ambos era apenas no tocante ao alvo de cada ministério. O principal alvo de Paulo era os gentios; o principal alvo de Pedro era os judeus. Isso, evidentemente, não significava que Paulo não deveria pregar aos judeus (At 9.15), ou que Pedro não deveria evangelizar gentios. Na verdade, os judeus eram os primeiros que Paulo tentava conduzir à fé nas cidades por onde passava (At 13.45-48; 14.1; 18.5-6; 28.16-28), e Pedro foi personagem fundamental no “processo de inclusão” dos gentios na igreja (At 10; 15.7). Aqui, no entanto, é-nos ensinado acerca da ênfase do trabalho de cada um (Rm 11.13; 1Tm 2.7).
A despeito de atuarem em esferas diferentes, a igualdade entre o apostolado de Paulo e o de Pedro estava no fato de que Deus operara da mesma forma por meio de ambos (8). Não havia, pois, razão alguma para que Paulo fosse considerado um falso apóstolo ou um apóstolo de categoria inferior como pretendiam os mestres legalistas. Paulo ensina no v.8 que nem mesmo o próprio Deus fazia essa distinção.
A operação de Deus por meio de Pedro e Paulo como apóstolos, consistiu em manifestar seu Filho a eles depois de ressurreto (Jo 20.19-20; 1Co 9.1), incumbi-los pessoalmente da missão de proclamar o Evangelho (Jo 20.21; At 26.15-18; 1Co 9.17), dar-lhes singular intrepidez e sabedoria ao pregar (Mt 10.17-20; At 4.13; 2Co 10.3-5; 11.23-29), abrir o coração de incrédulos para a sua mensagem (At 2.37-41; 16.14) revelar-lhes verdades doutrinárias até então desconhecidas (2Co 12.1,7; Ef 3.2-6; 2Pe 3.1-2), e realizar milagres jamais vistos como prova de que sua mensagem vinha de Deus (2Co 12.12; Hb 2.3-4).
Paulo conclui o relato sobre sua segunda visita a Jerusalém falando que os líderes da igreja ali reconheceram a legitimidade de seu ministério e estenderam a mão a ele e a Barnabé, um sinal de harmonia e amizade, estando em acordo quanto às diferentes esferas de atuação missionária (9). É bom ressaltar que os líderes aqui, Tiago, Pedro e João, são chamados de colunas, o que lembra o dever dos que estão à frente de sustentar a igreja com força e firmeza inabalável (2Tm 1.7).
O v. 10 revela que os líderes de Jerusalém somente pediram que Paulo e Barnabé se lembrassem dos pobres. Isso fazia sentido, considerando que a visita tinha sido motivada pela profecia de Atos 11.27-30. Tal pedido, porém, não refletia qualquer autoridade dos apóstolos de Jerusalém sobre Paulo. Mesmo assim, ele se esforçou para atendê-lo. De fato, o cuidado com os carentes foi uma marca presente ao longo de todo o ministério de Paulo (Rm 15.25-26; 1Co 16.1-4).
[1] A fome mencionada em Atos aconteceu, provavelmente, entre 46 e 48 d.C., mas não abrangeu o Império inteiro, sendo a Judéia o seu cenário. Contudo, aqueles dias foram marcados por fomes freqüentes que sobrevieram a diferentes regiões de todo o Império.
[2] Isso era especialmente importante porque, como se sabe, os falsos mestres da Galácia estavam dizendo que o ensino de Paulo era contrário à doutrina dos apóstolos de Jerusalém.
[3] Tito foi, posteriormente, delegado de Paulo com a missão de administrar a crise em Corinto (2Co2.12-13; 7.5-7). Ele também coordenou as igrejas de Creta (Tt 1.5).
[4] Como se sabe, os judaizantes entendiam que a circuncisão era fundamental para que o homem fosse justificado. Veja 5.2-4, 6; 6.12-13, 15.
[5] A atividade e ensino dos judaizantes de Jerusalém num tempo posterior mas muito próximo da composição da Epístola aos Gálatas podem ser vistos em Atos 15.1-2,5.
Fonte: Igreja Redenção
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