terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Duas Gerações, Duas Histórias

Por Marcelo Berti

Em nosso último estudo observamos a história de três irmãos, e como Yahweh tratou da história e da manutenção da Sua Promessa feita em Gn.3.15. Nesse estudo observaremos as distinções entre as gerações de Caim e de Sete e o modo como a posição de ambos diante de Deus influenciou o modo como seus descendentes se posicionaram diante de Yahweh.

A.     A Genealogia de Caim:
A história dos descendentes de Caim inicia com uma triste declaração: “Retirou-se Caim da presença do Sehor, e habitou na terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn.4.16). Já temos dito que Node não é uma região propriamente dita, ou não uma que tivesse nome, mas que Caim teria saído da presença de Deus ao oriente do Éden como terra de peregrinação, como o termo hebraico parece sugerir. Caim tornou-se errante pelo mundo, e a expressão Node fortalece essa idéia da maldição de Deus sobre sua vida.
O retrato final da sentença de Caim é similar ao que vemos em Adão e Eva, que foram colocados fora do Éden, mas de Caim é dito que ele foi expulso da Presença de Yahweh. A impressão que temos com essa declaração é que Deus encaminhou Caim a vaguear pela terra, e ele foi. Agora sem alternativas, Caim parece ter cumprido a primeira ordem de Deus. “O retirada de Caim da proximidade do afeto dos pais, dos relacionamentos familiares, e da manifestação divina, deve ter sido acompanhada de profundo e ulterior sentimento de arrependimento e remorso. Mas um profundo e recorrente transgressor e ele deve sofrer as conseqüências[1]”.

1.         Desgraça Esperada:

Era de se esperar que Caim, fora da presença de Deus, levasse seu potencial ao extremo e que seus descendentes fizessem o mesmo. Entretanto, alguns detalhes do texto nos chamam a atenção no modo como Moisés conta sua história e precisamos lê-la com atenção.
a. Caim Exilado: Início da Cidade:
Sobre a questão do casamento de Caim, recomendamos o leitor ler o capítulo anterior, quando falamos sobre a possibilidade de um casamento entre irmãs ou sobrinhas (cf. A esposa de Caim). Sobre o uso dos termos “conhecer” como eufemismo, no capítulo anterior (Caim e os frutos da Queda) atestamos que “a ênfase do texto descreve a intimidade do casal de modo eufemístico para demonstrar a procriação da humanidade conforme esperada por Deus na Criação”.
…e deu à luz a Enoque: Um detalhe interessante na genealogia de Caim é o nome do seu primeiro filho. Ao que tudo indica o nome Enoque em hebraico significa “dedicado”. Sobre o significado do nome do primogênito de Caim, Clarke afirma que Enoque “significa instruído, dedicado, ou iniciado, e especialmente em coisas sagradas, que pode ser considerado uma prova de arrependimento de Caim, pois parece que ele dedicou este filho de Deus[2]”.
Por outro lado, Merkh entende a atitude de Caim como um desprezo para com Deus, observe: “Nada no texto indica que ele se arrependeu ou confessou seu pecado. Em vez de contrição, encontramos auto-comiseração.  Em vez de aceitar a disciplina do Senhor, ele reivindica seus direitos e sente-se injustiçado.  Nunca apresenta frutos de arrependimento, mas resigna-se a uma vida de vagabundo, longe do Senhor e da sua graça[3]”.
Considerando o texto como um todo, é bem provável que Clarke esteja equivocado, e que, embora o nome do primogênito de Caim tenha um excelente significado, Caim demonstra sua rebeldia para com Deus quando, por sua própria iniciativa, inicia uma cidade contrariando a disciplina divina de que ele seria errante pela terra.
…edificou uma cidade: Considerando a construção da cidade, Barnes sugere que Caim estaria se protegendo de pessoas que poderiam intencionar vingar-se por Abel, observe: “Aqui encontramos o motivo de medo e defesa pessoal ainda dominante Caim. Sua mão havia sido embebida no sangue de um irmão, e ele espera que a mão de alguém um dia será contra ele[4]”. Essa atitude de Caim seria representa mais uma atitude de fuga da presença do Senhor do que dedicação a Ele, como Clarke sugere.
Outro detalhe que importa ser lembrado é que o desenvolvimento numérico dos descendentes de Caim não seria obstáculo para a criação de uma cidade. Como vimos na previsão de Ross no último estudo, o crescimento demográfico da população primeva, considerando sua longevidade, não seria problema. Keil & Delitzsch sobre isso afirmam: “A construção de uma cidade por Caim deixará de nos surpreender, se considerarmos que, no início da sua edificação, séculos já passaram desde a criação do homem, e os descendentes de Caim poderiam, por esse tempo ter aumentado consideravelmente em número[5]”.
Outro detalhe é que o termo hebraico para cidade (hb. iyr) não implica necessariamente em uma grande cidade, observe, por exemplo, que em Gn.10.12 Moisés acresce o adjetivo “grande” (hb. gadowl) para descrever uma grande cidade. O termo pode descrever tanto uma pequena cidade rural ( 1Sm.27.5) como uma vila (Js.13.23), ou até mesmo parte de uma cidade (1Sm.12.27).
…lhe chamou Enoque: Aqui novamente vemos a atitude incomum de Caim que ao invés de nomear a cidade com seu nome (Sl.49.11), como poderíamos esperar, ele o fez em nome do filho. Talvez, por sua afeição o tenha feito.
b. Lameque: Início da Poligamia:
Moisés quando fala sobre a criação do homem e da mulher, nos instrui por dizer que a o fato de ter sido a mulher criada a partir da costela do homem, existe no casamento a identificação da unidade entre os cônjuges, observe: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gn.2.24).
Observe que além de atestar a unidade do casal, Moisés optou pelo singular para se referir à mulher de Adão: “à sua mulher”. Essa declaração nos auxilia a compreender que o padrão que Deus tem para a união matrimonial é fundamentada em um casamento monogâmico e heterossexual. Isso é claramente observado no fato de que assim foi a preferência divina ao estabelecer a criação do homem e sua mulher. Note também que Jesus Cristo quando perguntado sobre o divórcio voltou os olhos para o mesmo verso para defender a santidade do casamento (Mt.19.4-5). Todas essas declarações nos levam a compreender que o padrão de Deus para o casamento deve ser realizado nos termos de Gn.2.23-25.
Lameque tomou para si duas esposas: Mais um passo na distância do padrão de Deus é alçado aqui. Enquanto o conselho divino determinava o padrão para o relacionamento matrimonial, Lameque, descendente de Davi demonstra seu completo desprezo pela palavra de Deus. Sobre isso Calvino nos instrui:
“Temos aqui a origem da poligamia em uma raça degenerada e perversa, e primeiro autor do mesmo é um homem cruel, destituído de toda a humanidade. Se ele tivesse sido impelido por um desejo imoderado de aumentar sua própria família, como os homens orgulhosos e ambiciosos costumam ter, ou pelo simples desejo, é de pouca importância se determinar, porque, de qualquer maneira ele violou a lei sagrada do casamento que tinha sido entregue por Deus. Porque Deus tinha determinado, que “os dois deveriam ser uma só carne”, e que é a ordem eterna da natureza. Lameque, com desprezo brutal de Deus, corrompe as leis da natureza[6]
Em acréscimo ao comentário de Calvino, Keil & Delitzsch falam que Lameque “foi o primeiro a preparar o caminho para a poligamia, pelo que os aspectos éticos do casamento, como ordenado por Deus, foi transformada pela concupiscência dos olhos e a concupiscência da carne[7]”. Não podemos ignorar o padrão de Deus em estabelecer um molde para o relacionamento matrimonial, do mesmo modo que não podemos minimizar a atitude de Lameque.
Contudo, é importante lembrar que, embora a poligamia não fizesse parte do padrão de Deus, ainda assim Deus o havia permitido em sua legislação e em muitos casos do Antigo Testamento. Personagens que marcaram a história de Israel conviveram com esse tipo de comportamento sem serem exortados por Deus por isso. A própria Lei incluía modos de se regulamentar esse tipo de comportamento, como restrições e permissões. Observe, por exemplo, o caso da morte de um homem que não deixou descendentes, a Lei instruía a seu irmão a assumir sua cunhada para dar descendência a seu irmão (Dt.25.5-10). Esse é um caso de Bigamia permitida pela Lei de Moisés dada por Deus.
No caso dos homens de Deus que conviveram com algum tipo de relacionamento matrimonial que não estava em conformidade com o padrão não foram exortados por Deus por isso. Considere em Gênesis o caso de Abraão, Sara e Hagar, que embora tenham violado o padrão divino do matrimônio não foram advertidos por isso. O mesmo pode ser dito de Jacó, Lia e Raquel.
Essa permissividade de Deus, contudo, não implica em normatização. Alias, é digno de nota que a casa dos polígamos no AT sempre sofreram de alguma forma por sua relação distorcida. Sobre isso Hamilton diz: “Na verdade, porém, quase toda família polígama do AT sofrem as mais desagradáveis e facciosas experiências precisamente por causa desta relação ad hoc. As lutas domésticas que se seguem são devastadores[8]”.
Tendo considerado isso, podemos concordar com Krell, quando fala sobre a situação de Lameque:
“A Bigamia era comum no Oriente Médio Antigo, mas nunca foi o desejo de Deus (cf. 2:24; Mateus 19:4-5). Deus o permitiu, no entanto, como fez com muitos outros costumes que Ele desaprovava (por exemplo, o divórcio, concubinas casamento, poligamia, etc), mas ele não estava satisfeito com esta violação da aliança de casamento[9]
Essa insatisfação divina é claramente observada por acontecer na família daquele que fora lançado para fora da presença de Deus. Sua distância de Deus fez de sua família a norma e regra para se viver e conviver diante de uma sociedade criada por eles e para eles. A questão aqui é claramente a visão egocêntrica e dominadora do homem sobre a vida social e matrimonial. O homem que no passado teria optado por dar ouvidos a sua esposa ao invés de Deus é agora um dominador violento e brutal. A degradação do pecado passa a atingir níveis lamentáveis.
c. Lameque: Retribuição desnecessária:
A descrição que Moises faz de Lameque é lamentável: Não apenas trata-se de um homem dominador em sua casa, mas um retribuidor irrefreado agindo segundo as leis do seu coração destituído de Deus. Observe a opinião de Kidner sobre o assunto:
“A canção de sarcástico desafio de Lameque revela rápido progresso do pecado. Enquanto Caim havia sucumbido a ele (7), Lameque exulta nele; enquanto Caim tinha procurado proteção (14,15), Lameque olha à sua volta em atitude de provocação: a selvagem desproporção entre matar um simples rapaz e uma simples ferida, constitui o ponto determinante de sua jactância (24)[10]
…matei um homem: A descrição de Lameque é fria e direta. O assassinato nas mãos de Lameque parece ainda mais pesado do que fora com Caim. Alguns comentaristas entendem que o texto não fala da crueldade de Lameque, mas de sua atitude de defesa para com sua família. Sailhamer, por exemplo, afirma:
“Para demonstrar que ele não tinha derramado sangue inocente, Lameque apela ao fato de que ele havia matado um homem por ter sido ‘ferido’ (lepsis) e ‘machucado’ (lehabburati). Ele não ‘aborrece a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o fere de golpe mortal’ (Dt.19.11) como Caim tinha feito, mas ele fundamenta seu recurso no conceito da defesa pessoal[11]”.
Em outras palavras, a atitude de Lameque aos olhos de Sailhamer, Lameque agiu em legítima defesa, o que não parece nada claro no texto. É digno de nota que o teor do texto sugere que Lameque estivesse promovendo a vingança com a intensidade que lhe era aceitável. A idéia de Sailhamer, fundamentada na possibilidade de que se tratasse de uma briga em defesa da família, além de não ter lugar no contexto não condiz com a terminologia usada por Moisés.
O termo para ferir (hb. petsa) é usado por Moisés na descrição da Lex Taliones, observe: “Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” (Ex.21.23-25). O termo é uma descrição de um machucado, ferimento, ou até mesmo chagas (Jo.9.17). A idéia desse texto é exatamente refrear atitudes como a de Lameque, que em sua resposta à ofensa que sofreu, um ferimento, respondeu com o assassinato (hb. harag). Se Lameque tivesse respondido à ofensa (ferimento) à mesma altura, sua atitude teria sido ao menos nobre. Entretanto, sua violência em resposta demonstra a vingança usurpada de Deus e o exercício da retaliação.
…um jovem: A tentativa de defesa de uma ação em legítima defesa de Lameque tem sua completa derrota na continuidade da leitura do texto: “matei… um jovem por que me pisou”. Se o ferimento fosse feito por um conflito, e Lameque, em resposta a isso, acabasse por matar tal homem, que justificaria a morte desse jovem? Outro detalhe que parece desfavorecer por completo é a identificação da idade desse jovem. O termo hebraico usado aqui (hb. yeled) é usado em Gênesis para descrever um menino recém desmamado (Gn.21.8), uma criança (21.14; 33.5, 14) e filhos de modo mais genérico (Gn.30.26; 32.22; 33.2). Nada no uso desse termo sugere alguém hábil a defender-se para que se sugira que tal “jovem” tivesse envolvido em uma briga com Lameque, ou estivesse a ameaçá-lo ou a sua família, para que se justificasse conceituar essa cena como um ato de legítima defesa.
Outro detalhe que deve ser considerado é a ação desse “jovem” para com Lameque: “um jovem por que mepisou”. A ARA optou por traduzir o termo hebraico usado aqui (hb. chabbuwrah) como algo tão insignificante como um pisão (cf. Is.1.6; 53.5 – pisaduras). A verdade é que o termo pode ter uma conotação um pouco mais agressiva do que apenas um pisar em outrém, pois o termo também é usado na descrição de Moisés da Lex Taliones: “Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” (Ex.21.23-25).
Em Provérbios o termo é usado com o sentido de vergão, como o resultado de uma ferida feita cuja marca fica na pele (Pr.20.30). Ainda assim, não encontramos na ação dessa criança algo que tenha sido digno de assassinato. A julgar pelo avanço dos efeitos do pecado na raça humana (Gn.6), é visível que Moisés está a apresentar o declínio da humanidade na vida isenta de Deus: Caim assassinou por inveja; Lameque por orgulho e vanglória. Lameque desce a um nível ainda mais desprezível que seu ancestral Caim: Caim lamentou por seu pecado, teve medo e por auto-comiseração buscou em Deus recurso para sua sobrevivência; Lameque se orgulhou de ser assassino, não teve piedade e zombou da proteção de Deus a Caim e se fez valente diante de sua própria sorte. Deffinbaug concorda com isso, observe:
“Lameque nos leva ao ponto da história do homem onde o pecado não é apenas cometido descaradamente, mas com prepotência. Ele se vangloriou de seu assassinato para as suas mulheres. Mais que isso, ele se gabou de que seu pecado foi cometido contra um rapaz que simplesmente o ferira. Este assassinato foi brutal, ousado e vão[12]
Jonatas Edwards completa:
Com sua fala as suas esposas, Lameque demonstra sua impenitência, presunção e grande insensibilidade. Quando Caim assassinou seu irmão, sua consciência o atormentou grandemente; mas Lameque com grande soberba, ignora todo o remorso[13].

2.         Graça Inesperada:

É interessante que ainda no relato da descendência de Caim pudéssemos encontrar algum aspecto positivo que pudesse ser louvável. Numa família cercada por egos inflados e prontos ao assassinato, nós não esperaríamos encontrar virtudes dignas de atenção. Observe o que Deffinbaug diz:
“Certamente nada de bom poderia vir de tal homem. E mesmo assim, é da sua descendência que vêm as grandes contribuições culturais e científicas. Um filho tornou-se o pai dos pastores nômades, outro foi o primeiro de uma linhagem de músicos, e outro foi o primeiro dos grandes trabalhadores em metal. Precisamos fazer uma pausa para observar que mesmo o homem em seu pior estado não está desabilitado a produzir aquilo que é considerado benéfico à raça humana[14]
Esse aspecto da humanidade é interessante: Ainda no seu mais depravado estado, na qual todas as suas faculdades estão maculadas pela presença do pecado, ainda há um lampejo de brilhantismo artístico e profissional que revela a presença e a existência de um Ser Supremo e Criador. Na descendência de Caim vemos exatamente isso.
Alguém poderia dizer que toda sua produção era orientada para o mal, que suas músicas seguiam as notas do canto de Lameque às suas esposas, entretanto nada no texto favoreceria essa noção. A apresentação de Moisés sobre os ofícios dos descendentes de Caim não são analisados, apenas apresentados sem qualquer descrição de favoritismo ou preterição. O que podemos notar é que todas as descrições são apresentadas com imparcialidade de tal modo que não é possível se considerar uma em preferência a outra. Ou seja, não se pode afirmar no malefício da música da descendência de Jubal sem rejeitar a pecuária de Jabal ou o uso da serralheria de Tubalcaim.
É bem verdade que se sugere que a manipulação de metais teria sido no futuro usada para produção de armas usadas para assassinato. Do mesmo modo que a música teria sido usada para a adoração de deuses pagãos. Em nossa sociedade esse fato não é diferente: o desenvolvimento científico está claramente atrelado ao desenvolvimento bélico do mesmo modo que a música atrelada à sensualidade. Entretanto, não se pode dizer que o meio tenha determinado o fim, mas que o uso do meio tenha pervertido o algo essencialmente neutro, como música, ciência e tecnologia.
Lembre-se que todos esses instrumentos (música, ciência, tecnologia) podem e são usados para conceder Glória a Yahweh como Deus Criador. A música tem sido o instrumento cristão de louvor desde seus primórdios, mas mais recentemente tanto ciência como tecnologia tem se aliado ao modo de louvor a Deus. Com a tecnologia vemos o avanço das ferramentas de estudo, pesquisa, produção acadêmica do mesmo modo que com a ciência vemos os relatos antigos de Yahweh confirmados pelo estudo contemporâneo. Segue-se que, a julgar pela nossa experiência, entendemos que não é a profissão de Jubal essencialmente ruim, bem como a de Jabal e Tubalcaim, ainda que, em função dos investimentos e desenvolvimentos destes, muitos males foram produzidos na humanidade.

B.     A Genealogia de Sete

É muito interessante o modo como Moisés nos apresenta a história da humanidade: Ele claramente opta por apresentar separadamente a história dos homens que se dedicaram a Yahweh em contraste aos que resolveram viver longe dele. Ainda que Moisés possa identificar na genealogia de Caim algumas virtudes profissionais e artísticas, é na descendência de Sete que encontramos claras manifestações da Graça de Deus.
Na descendência de Sete encontramos três personagens que merecem nossa atenção: Enos, por sua descrição de que a partir dele passou-se a invocar o nome de Yahweh; Enoque, pois dele é dito que andou com Deus; e Noé, pois nele repousa a expectativa da libertação da maldição da Queda.

1.         Enos: Início da Adoração de Yahweh

O nome de Enos não traz em si mesmo nada de especial: O significado básico do seu nome é “homem”, e é aplicado no AT em referência a alguém do sexo masculino (Is.8.1; 13.12), como descrição da humanidade (Dt.32.26; 2Cr.14.11; Jó.4.17) e em referência ao filho do filho de Eva que foi considerado substituto de Abel.
Entretanto, é interessante que alguns comentaristas, como Keil & Delitzsch, defendem que o nome de Enos deriva de um verbo que significa ser fraco, frágil o que designa a sua condição frágil e mortal. Sobre o assunto, ainda acrescenta que “neste nome, portanto, o sentimento e o conhecimento da fraqueza humana e sua fragilidade foram expressos[15].
…invocar o nome do Senhor: Como podemos entender essa expressão? Já se tem dito ao menos três possibilidades para se entender essa expressão: (1) como se os descendentes de Enos passaram a se chamar pelo nome de Yahweh; (2) como se nessa época iniciou-se a proclamação de Yahweh como Deus Criador e Redentor; (3) que nessa época se iniciou a adoração a Yahweh.
  1. Ser chamado pelo nome de Yahweh: Jonatas Edwards sugere que a tradução correta dessa expressão é “Então os homens passaram a serem chamados pelo nome do Senhor”. Em explicação à sua preferência Edwards complementa: “então eles começaram a se chamarem, e a seus filhos, pelo Seu nome, o que significa que eles se entendiam como povo de Deus”. Há certo valor nessa opinião, visto se demonstrar tal distinção entre os descendentes de Caim e de Sete. Essa opinião é favorecida pelo contexto e tem o aval critico de diversos autores cristãos. Edwards, ainda, sobre o assunto diz: “Eu tenho dito, que o povo de Deus é abertamente distinguido do distorcido e apóstata mundo da posteridade de Caim e daqueles que estavam com ele, por se apresentarem à sociedade de modo distinto, sendo chamados filhos de Deus, enquanto os outros se chamavam filhos dos homens[16]”. Essa visão, certamente favorece a leitura de Gn.6 de modo natural e claro, sem depender de tradições estranhas que falam sobre a interação de seres angélicos com seres humanos. Adam Clarke defende a mesma opinião: “os homens começaram a chamar-se pelo nome do Senhor, essas palavras demonstram que no tempo de Enos os verdadeiros seguidores de Deus começaram a distinguir-se, e serem distinguido por outros, pela denominação de filhos de Deus[17]”.
  2. Adorar a Yahweh: Albert Barnes sugere que tal expressão esteja relacionada à adoração pública de Yahweh, como Deus digno de adoração, observe: “A solene invocação de Deus por Seu nome próprio com oração e louvor pública e social é o sentido mais usual da frase diante de nós agora, e é para ser adotada assim a menos que exista algo no contexto ou nas circunstâncias do texto que demande outro significado[18]”. Keil & Delitzsch concordam com Barnes: “Aqui temos uma descrição do início da adoração a Deus, que consiste em oração, adoração, agradecimento ou o reconhecimento e celebração da Misericórdia e Auxílio de Yahweh[19]”. Walter Elwell, de modo similar, entende que o texto fala da adoração pública a Yahweh. Para ele o texto trata da inauguração da verdadeira adoração a Yahweh (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25) [20]. Wlatke entende que pelo fato de Enos significar fraqueza, fragilidade, a humanidade voltou-se para Deus em adoração (Sl.149.6) [21].
  3. Proclamar a Yahweh: Ross opta por ver nessa expressão da proclamação do nome de Yahweh[22]. Uma vez que o termo hebraico “shem” (nome) é seguida do nome próprio Yahweh, e que o mesmo termo é empregado para descrever o caráter ou atributos de uma pessoa (Is.9.6), pode-se supor que o texto trata da proclamação da Pessoa e Caráter de Yahweh.
Seja como for, o que fica evidente é importante lembrar o leito que nenhuma dessas ações exclui as outra. É bem possível que todas essas fizessem parte do conceito de invocar o nome do Senhor. Contudo, temos que considerar que a adoração a Yahweh é anterior a Enos, pois tanto Caim quanto Abel já ofereciam sacrifícios ao Senhor, e certamente entendemos isso como um ato de adoração. Ou seja, se adoração abrange todos os seus aspectos temos que entender que tal não se inicia em Enos. Se há, porém, distinção entre a ação de Abel e Enos, não temos clareza de qual é tal diferença. Portanto, dizer que esse “invocar” é estritamente adoração não me parece aceitável com o contexto.
Por outro lado, ela é perfeitamente aceitável no conjunto de pessoas que passam a se considerar “filhos de Deus”, ou aquele grupo que se considera pertencente a Ele. É possível inferir que a fé demonstrada por Abel, e provavelmente aprendida com Adão, foi mantida na genealogia de Sete e que a partir daquele ponto, os homens que mantinham a adoração verdadeira a Yahweh, isto é, de acordo com as expectativas divinas, passaram a se chamar pelo nome de Yahweh. Nada de conflitante há nessa proposta.
Há de se dizer, que a idéia de Ross é certamente interessante: A partir de Enos se passou a proclamar a Yahweh. É bem verdade que diante do todo das escrituras a proclamação é sempre antecedida pela adoração daqueles que são filhos de Deus. Portanto, a idéia de Ross não oferece qualquer obstáculo às idéias anteriores. Mas, há qualquer referência a essa idéia no texto? Provavelmente não. Como Elwell já demonstrou o termo é usado em expressões similares como demonstração de verdadeira adoração (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25), e em nenhum desses versos sugere qualquer idéia de proclamação.
A idéia de ser chamado pelo nome de Yahweh, provém da terminologia do termo hebraico, que também trás a idéia de nomear, como vemos no relato da criação (Gn.1.5; 8, 10; 2.19,20 etc) e em outras situações (3.20; 4.17, 25 etc). A própria LXX traduz o termo hebraico com o termo grego “epikaleö” no presente do infinitivo na voz média, que seria traduzido “a passaram a ser chamados”, como sugere a tradução de Edwards. Entretanto, tal possibilidade não se harmoniza com as outras ocasiões que o termo hebraico é utilizado em Gênesis para descrever uma ação de adoração (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25). Portanto, é seguro afirmar que o texto fala sobre a manutenção da verdadeira adoração entre os descendentes de Sete, muito embora as outras possibilidades pudessem acompanhar e fazer parte dela. Com isso, entendemos que a idéia da adoração feita por Abel associou-se o “invocar” o nome de Yahweh, como uma forma cultual e pública de adoração.
…Todos os dias de Enos: Como todos os personagens apresentados na genealogia de Sete, mesmo Enos um homem que marcou o início de uma era de consagração a Deus na história da humanidade não esteve isento de sofrer dos malefícios da queda: ele também  veio a falecer (hb. muwth). Esse é o verbo mais usado nas genealogias, e seu uso não é acidental: a repetição desse termo para descrever a situação dos homens diante da sua própria humanidade corrompida é um lembrete divino de sua ordem dada a Adão: “Certamente morrerás”. Após a Queda, nem mesmo a obediência pode retirar do homem o destino da morte, exceto se Deus agir milagrosamente, como faz com Enoque.

2.         Enoque: Vida com Deus

Como já temos demonstrado o nome de Enoque significa “dedicado, consagrado” e na família de Sete isso certamente indica que tipo de consagração e dedicação esse home teve. Sobre ele Clarke atesta: “O nome do patriarca, Enoque significa instruir, iniciar, dedicar. De sua conduta subseqüente estamos autorizados a acreditar que era, desde cedo, instruído nas coisas de Deus, iniciado na adoração de seu Criador, e dedicado ao seu serviço[23]
A história de Enoque narrada em Gênesis não tem grandes detalhes e especificações: à semelhança de todos os personagens apresentados, Enoque nasce, vive muitos anos, tem filhos e filhas. Entretanto, duas declarações sobre Enoque merecem nossa atenção: (1) Andou Enoque com Deus (v.22, 24); (2) E já não era, por que Deus o tomou para si. Essas duas breves sentenças descrevem um grande homem de Deus no passado que serve de modelo para nós.
Andou Enoque com Deus: A idéia de andar com Deus parece por demais abstrata uma vez que a comunhão com Ele havia se rompido no Éden, e que os passeios vespertinos já não mais aconteciam como antes. Contudo, Enoque parece ter sido agraciado por Deus com Sua constante companhia. Gill, sobre o fato de Enoque andar com Deus, diz: “Ele caminhou em nome e temor de Deus, segundo a sua vontade, em todos os mandamentos e preceitos do Senhor fez então conhecido, ele caminhou pela fé nas promessas de Deus, e na expectativa do Messias, o descendente prometido; andou em retidão e sinceridade, como na visão de Deus[24]”.
A idéia de uma vida santa não pode estar ausente dessa expressão, e certamente Gill tem razão quando diz que Enoque vivia em conformidade com a Vontade de Deus e em obediência a Ele. A descrição de sua intimidade como Deus é tão simples e convidativa que nos estimula a buscar viver como ele viveu, um modelo de vida em meio à morte.
Sobre ele Barnes acrescenta:
“Andar com Deus implica em comunhão com ele em pensamento, palavra e ação, e opõe-se nas Escrituras ao andar contrário a Ele. Nós não temos a liberdade de se inferir que Enoque foi o único nesta linha, que temia a Deus. Mas, temos certeza de que ele apresentou um exemplo eminente de que a fé que purifica o coração e agrada a Deus. Ele fez um avanço notável sobre a realização dos tempos de seu pai Sete. Naqueles dias, eles começaram a invocar o nome do Senhor. Agora, a comunhão dos santos com Deus atinge sua forma mais elevada – a de andar com ele, fazendo a sua vontade e desfrutar de sua presença em todos os aspectos da vida[25]
Há ainda nesse verso um indício interessante: Ao que tudo indica a tradução da ARA não é apropriada para descrever a história de Enoque nesse verso. A ARA assim verte o texto: “Andou Enoque com Deus; e, depois que gerou a Metusalém, viveu trezentos anos; e teve filhos e filhas” (v.22). A idéia que se obtém dessa leitura é que o andar com Deus de Enoque era uma descrição de sua pessoa, ao passo que a descrição de tempo é apenas um referencial para a identificação do seu descendente Matusalém. Entretanto, a NVI (em inglês: NIV, NET CJB) opta por verter o texto levemente diferente: “Depois que gerou a Matusalém, Enoque andou com Deus 300 anos e gerou outros filhos e filhas”. Segundo essa versão, a descrição de tempo fala sobre o período que Enoque andou com Deus. Matthew Henry, que é favorável à essa leitura, atesta:
“Ele andou com Deus trezentos anos, enquanto ele continuou neste mundo. O hipócrita não ora sempre, mas o verdadeiro santo que age a partir de um princípio, e faz da religião a sua escolha, irá perseverar até o fim, e caminhar com Deus, enquanto ele vive, como aquele que espera viver para sempre com ele[26]
A idéia da perseverança e manutenção de uma vida orientada a devoção e vida com Deus é certamente um forte exemplo de como devemos levar nossa vida diante de Deus. Entretanto, tal descrição nos levanta uma pergunta: Teria Enoque algum mérito nessa vida que levou com Deus, ou seria isso graça? Aqueles mais inclinados a pensar na salvação e vida com Deus centrada no esforço encontram no exemplo de Enoque um referencial de perseverança, entretanto, o texto traz uma forte conotação reciprocidade entre Enoque e Deus. Ou seja, enquanto Enoque anda com Deus, Deus anda com Enoque. Embora o verbo tem Enoque por sujeito, o andar era uma cooperação entre Deus e Enoque. Até mesmo o arminiano Adam Clarke reconhece esse fato:
“Aqueles que estão familiarizados com o original, irão perceber claramente que a sentença tem essa força. Um verbo na conjugação chamada hithpael implica num ato de reciprocidade, o que um homem faz a si mesmo: aqui podemos considerar Enoque recebendo uma instrução piedosa, e a influência divina por meio dela, resultando no fato de que ele é um trabalhador com Deus, e, portanto, toma a resolução de andar com o seu Criador, que ele não pode receber a graça de Deus em vão[27]”.
Por um lado existe a firme decisão de se viver para Deus, mas essa decisão aconteceu um dia em função da ação de Deus na sua vida. Não podemos supor que Enoque passou a uma vida de completa devoção por sua própria força e habilidade, pois tal referencial não é encontrado nas escrituras. Ou seja, a atitude de andar com Deus é derivada da ação de Deus se fazer manifesto e presente em sua vida. Os tradutores da NET Bible, sobre isso atestam: “Em Gn 5:22 a frase sugere que Enoque e Deus ‘se davam bem’[28]”. Portanto, há um relacionamento entre Enoque e Deus de tal modo que há interação entre eles, movimento e desenvolvimento. Por isso, há manutenção e durabilidade. As escrituras não ensinam que o andar com Deus é o cumprimento de uma rotina religiosa, mas um viver diário com Deus. Tal idéia já era encontrada na LXX, que optou por traduzir o “andar com Deus” por “agradar a Deus” (Gr. euarestéö). John Sailhamer sobre isso diz:
“A frase ‘andou com Deus’ claramente significa algo importante para o autor, pois ele usa a mesma expressão para descrever Noé como um ‘um homem justo e reto entre os seus contemporâneos’ (6.9), e Abraão e Isaque como servos fiéis de Deus (17.1; 24.40; 48;15). Seu uso aqui demonstra que o autor vê nela a razão pela qual Enoque não morreu. Enoque é ilustrado como aquele que não sofre o destino de Adão (certamente morrerás) por que, ao contrário dos outros, ele ‘andou com Deus’[29]
Uma das perguntas que fazemos para essa genealogia em Gênesis é por que razão o autor optou por afirmar a morte de todas as pessoas que apresenta? Como é observado em outras genealogias bíblicas, a idéia da morte está implícita, mas não declarada. Por que Moisés faria isso aqui?
Para responder a essa pergunta podemos observar dois detalhes: (1) A fidelidade de Deus – Quando voltamos nossos olhos para a promessa que tinha feito a Adão de que a desobediência os levaria à morte, e observamos a realização concreta desses fatos nessa genealogia, entendemos que Deus é Fiel à Sua Palavra, e a levará a cabo diante de todos; (2) A Graça de Deus – Ler Gênesis 5 é como ouvir a marcha fúnebre: viveu, teve filhos e filhas e morreu, morreu. A fatalidade que assombra a humanidade é descrita de maneira simples e direta: “A vida é como a fumaça, nem bem se fez, se desfaz, e a cada instante que passa é um passo a menos e a mais, na direção do fim, frio feroz, o fim de todos nós” (João Alexandre, Fim de Todos nós). Por outro lado, vemos na história de Enoque um lampejo gracioso de Deus em não deixá-lo à morte: Enoque não morreu. Tentando responder a pergunta já lançada acima, Sailhamer diz:
“A resposta não é difícil de encontrar no capítulo 5, por que nesse capítulo apenas uma dos patriarcas, Enoque, não morreu, O número total de anos foi apresentado, como nas outras genealogias, mas apenas aqui há uma exceção: Enoque já não era, por que Deus o tomou. Em outras palavras, o autor propositadamente descreve a morte de cada um dos patriarcas no capítulo 5 para destacar e chamar a atenção do leitor para o caso excepcional de Enoque[30]
Esse evento certamente é um evento excepcional: Mesmo outras pessoas que viveram com Deus, e foram descritas como pessoas que “andaram com Deus”, como Noé, não foram arrebatadas à presença de Deus. É bem provável que com esse evento Deus esteja a nos ensinar que o desejo de Deus é prefigurado em Enoque: Ele quer que todos os Seus Filhos, que andam com Ele, vivam Eternamente com Ele.
Outro detalhe que deve ser lembrado, é que é bem possível que Deus está nos ensinando que “andar” com Deus, ou viver com Ele, é muito mais do que obedecer seus mandamentos. Em Dt.30.16 lemos: “Porquanto te ordeno hoje que ames ao SENHOR teu Deus, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas, e te multipliques, e o SENHOR teu Deus te abençoe na terra a qual entras a possuir”. Essa clara distinção entre andar de acordo com Deus e obediência ao que Deus diz é fundamental para se entender que “andar com Deus” está além da obediência e inclui amor a Yahweh como nosso Deus e Senhor. Certamente, aquele que ama a Deus acima de todas as coisas e vive em relacionamento com Ele o Obedecerá. Mas, Enoque ilustra o fato de que a obediência cega e desassociada de outras virtudes espirituais não é garantia de vida com Deus.
Enoque, o homem que andou com Deus (Gn.5.22), Noé, que também andou com Deus (Gn.6.9), Abraão, que creu em Deus e isso lhe foi imputado como justiça (Gn.15.6) são exemplos claros, anteriores a Lei, que são apresentados por Moisés como modelos de fé e confiança em Deus.
…e já não era: Essa frase de difícil tradução tem levantado algumas perguntas sobre o que de fato aconteceu com Enoque. Mais três opções são vistas nas traduções em português para essa expressão: (1) não foi encontrado (NVI); (2) não apareceu mais (ACF); (3) e já não se viu (ARC). A versão ARA optou por verter “e já não era” seguindo a KJV. A LXX verte de modo similar a NVI: “e não era encontrado” (kaì ouk ëupisketo). O Targun de Onkelos e o de Jerusalém também carregam a idéia da ARA e KJV. Entretanto, o Targun supostamente de Jonatas, diz: “e ele já não estava entre os peregrinos na terra”. Em todas existe a idéia de que Enoque deixou de estar presente, pois não foi encontrado, não apareceu em nenhum outro lugar e por isso, já não era visto. Todas essas idéias são tentativa de se traduzir a partícula negativa (hb. ayin) com o sufixo pronominal. Ou seja, ao invés de afirmar que Enoque morreu, Moisés diz que ele não estava mais presente. Mas, uma pergunta surge aqui: Para onde foi Enoque?
… porque Deus o tomou para si: A seqüência do texto deixa claro: Deus o tomou para si, uma expressão rara no Antigo Testamento que marca uma expectativa judaica de futuro. Veja o caso, por exemplo, do Salmo 49.15: “Mas Deus remirá a minha alma do poder da morte, pois ele me tomará para si”. A expressão usada em referência a Enoque, é nesse Salmo explicada como a redenção da alma do salmista, o que favorece a idéia de que Enoque foi remido por Deus e recebido por Ele em Sua Presença. Fato similar acontece no Salmo 73.24: “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória”. Nesse verso a expressão “me recebe” é exatamente a mesma encontrada na descrição de Enoque em Gênesis. Essa convicção de que uma vida debaixo da orientação de Deus implica em um vida futura com Ele parece muito neotestamentária, entretanto, já é vislumbrada profeticamente no exemplo de Enoque e na expectativa dos salmistas.
Diferente do que se podia esperar na descendência de Adão, um homem entre os seus não morreu, mas foi trasladado para a Glória com Deus eternamente. O autor de Hebreus nos explica isso um pouco melhor: “Pela fé, Enoque foi trasladado para não ver a morte; não foi achado, porque Deus o trasladara. Pois, antes da sua trasladação, obteve testemunho de haver agradado a Deus” (Hb.11.5). Para esse autor, o exemplo de Enoque demonstra que o essencial em sua vida foi o exercício da fé seguida de uma vida que agrada a Deus (como sugere a LXX). O termo que o autor de Hebreus usa para descrever a ação de Deus em Enoque é “metatíthemi”, o termo que a LXX usa para traduzir o termo hebraico “laqach”, cujo sentido básico é receber, tomar. Provavelmente pelas implicações que se via nessa ação divina de se tomar a Enoque para si, a LXX utilizou um termo que significa basicamente mudar de posição, ser recebido. O termo é usado em outros 15 lugares na LXX, normalmente com a idéia de mudar. Considerando que a ação divina em Enoque foi mudá-lo de plano, do terreno para o espiritual, o termo também tem conotação de transformação (Jd.4) ou o ser trasladado de Hebreus.
A idéia é clara aqui: Enoque foi chamado à presença de Deus e no relato de Gênesis ele é o único que não sofreu da morte como malefício da punição de Adão. Nesse relato temos uma firme expectativa: Aqueles que genuinamente vivem com Deus, com Ele viverão. É por isso que Deuffinbaug conclui:
“A morte chegou à descendência piedosa de Sete. Isto é repetido oito vezes no capítulo cinco. Mas Enoque é um tipo daqueles que verdadeiramente caminham com Deus. A morte não os tragará. Eles serão conduzidos à eterna presença de Deus, em cuja companhia viverão para sempre. A morte pode ser vista com naturalidade pelos verdadeiros crentes, pois seu aguilhão foi removido pela obra de Deus na morte de Jesus Cristo, o “descendente da mulher”. (Gn. 3:15)[31]”.

3.         Noé: Esperança em Deus

Como de costume, o nome hebraico de Noé (hb. noäh) é usado em um jogo de palavras com a sentença que se segue ao seu nome. É bem provável que o nome de Noé tenha alguma relação com o termo hebraico para descanso (hb. nuakh), mas, é certamente usado como paralelo do termo hebraico usado na ARA como consolo (hb. yenakhamenu).
Verdade seja dita, os dois termos não provêm da mesma raiz: nöah, como já demonstrado tem relação como nuakh, enquanto yenakhamenu provém da raiz nakham, que significa conforto. Entretanto, “as letras nun e heth juntas soam como o nome de Noé, formando uma paronomásia com o seu nome. Os termos não têm a mesma raiz verbal, e a conexão é apenas em função do som[32]”. Por outro lado, a idéia de um “descanso” do trabalho das nossas mãos, fruto da maldição divina, também se faz correlato com a idéia do nome de Noé. Uma vez que o nome de uma pessoa (hb. shem) descreve também seu caráter, vemos na nomeação de Noé a representação da expectativa apresentada na sentença que se segue. Portanto, em mais uma ocasião, Moisés brinca com as palavras para expressar uma verdade sobre a história da humanidade.
Este nos consolará dos nossos trabalhos: Noé é retratado por seus ancestrais como aquele sobre quem se repousa a esperança de libertação da maldição a que Yahweh havia submetido a terra. Essa esperança posta sobre Noé, não cumpriu-se como esperavam seus ancestrais, mas sabemos por usa história que ele foi um homem usado por Deus para salvar a humanidade, e ser instrumento da fidelidade de Deus para manutenção da sua promessa em Gn.3.15. A história de Noé, é uma história de recomeço, e será detalhada nos próximos capítulos.
O que se pode dizer com segurança é que a expectativa do descendente da mulher (que ainda não podemos chamar messiânica, nem cristã) era transmitida entre os descendentes de Sete, os que se entendiam como filhos de Deus, e viviam em adoração a Yahweh. Sem qualquer demonstração sobre a vida familiar desses personagens, sabemos que a família foi o cerne de sua transmissão de fé, visto que a mesma esperança que se tinha em Sete era vista em Noé, muito tempo depois. Essa tradição foi transmitida entre os familiares que mantiveram a revelação de Deus.

Conclusão

O que podemos concluir da história das duas genealogias? Que se não for a graça do Senhor na manutenção de um relacionamento especial com o homem, acompanhado de pessoas comprometidas com esse relacionamento, a humanidade está fadada ao fracasso moral e espiritual. Ainda que grandes desenvolvimentos possam surgir da impiedade, ela jamais é justificada. Sobre essa diferença, Deffinbaug diz:
“O que é que é enfatizado na linhagem de Sete? Nenhuma menção é feita a qualquer grande contribuição ou realização. Duas coisas marcaram os homens do capítulo cinco. Antes de mais nada, foram homens de fé (cf. Enoque, 5:18, 21-24; Lameque, 5:28-31). Estes homens olharam para trás e compreenderam o fato de que o pecado foi a raiz de seus problemas e pesares. E olharam à frente para a redenção que Deus havia providenciado através de sua descendência[33]

[1] BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[2] CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[3] MERCK, David, A História de 3 irmãos.
[4] BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[5] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.
[6] CALVINO, João, Commentary on Genesis. (http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
[7] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.
[8] Hamilton, The Book of Genesis Chapters 1-17, 238. Cf. Deut 21:15-17. IN: KRELL, Keith, Raising Cain (Genesis 4.1-26). (http://bible.org/seriespage/raising-cain-genesis-41-26).
[9] KRELL, Keith, Raising Cain (Genesis 4.1-26). (http://bible.org/seriespage/raising-cain-genesis-41-26)
[10] KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.72
[11] SAILHAMER, John, Genesis. Pp.66.
[12] DEFFINBAUG, Bob, The fruits of the Fall. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fruits-fall-genesis-41-26)
[13] EDWARDS, Jonathan, Notes on the Scripture.
[14] DEFFINBAUG, Bob, The fruits of the Fall. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fruits-fall-genesis-41-26)
[15] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.
[16] EDWARDS, Jonathan, Notes on the Scripture.
[17] CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[18] BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[19] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.
[20] Muito antes de Deus revelar-se plenamente como o Senhor a um povo chamado Israel (Ex 3:6), ou até mesmo para os patriarcas, há pelo menos um pequeno grupo de pessoas que compreender a identidade do verdadeiro Deus. Cf. Walter A. Elwell, ed., Evangelical Commentary on the Bible (Grand Rapids: Baker, 1989), Electronic Ed. IN: KRELL, Keith, Raising Cain (Genesis 4.1-26). (http://bible.org/seriespage/raising-cain-genesis-41-26)
[21] Waltke, Genesis, 101. IN: IN: KRELL, Keith, Raising Cain (Genesis 4.1-26). (http://bible.org/seriespage/raising-cain-genesis-41-26)
[22] Uso desta expressão no Pentateuco apoia mais a ideia da proclamação mais do a da oração (cf. Gn 12:8; Êxodo 34:6, Levítico 1:1). O significado do [termo hebraico] shem, “nome”, também exige a interpretação, já que a palavra é, na verdade, seguido do nome próprio. A palavra “nome” também se refere a características ou atributos (ver Isaías 9:6). A ideia desta linha é que as pessoas começaram a fazer a proclamação sobre a natureza do Senhor (“começou a fazer a proclamação do Senhor por nome”). Ross, Creation & Blessing, 169. IN: KRELL, Keith, Raising Cain (Genesis 4.1-26). (http://bible.org/seriespage/raising-cain-genesis-41-26)
[23] CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[24] GILL, John, Gill`s Exposition of the entire Bible. (http://www.freegrace.net/gill/).
[25] BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[26] HENRY, Matthew, Matthew Henry`s Commentary on the Whole Bible.(http://www.biblestudytools.com/commentaries/matthew-henry-complete/).
[27] CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[28] NET Bible Note (http://net.bible.org/verse.php?book=Gen&chapter=5&verse=22&tab=commentaries). Em ingles a citação é: “In Gen 5:22 the phrase suggests that Enoch and God “got along.””.
[29] SAILHAMER, John, Genesis. Pp.73-4.
[30] SAILHAMER, John, Genesis. Pp.72.
[31] DEFFINBAUG, Bob, Coming to Grips with Genealogies (Genesis 5:1-32). Bible.org (http://bible.org/seriespage/coming-grips-genealogies-genesis-51-32).
[33] DEFFINBAUG, Bob, Coming to Grips with Genealogies (Genesis 5:1-32). Bible.org (http://bible.org/seriespage/coming-grips-genealogies-genesis-51-32).
Fonte: Teologando

Nenhum comentário:

Postar um comentário