Por Wayne Gruden
Título original: Aqueles Que Acabam Se Afastando Podem Dar Muitos Sinais Exteriores de Conversão
Será sempre fácil distinguir os membros da igreja que têm autêntica fé salvífica daqueles que tem apenas um convencimento intelectual da verdade do Evangelho, mas não a autentica fé no coração? Não, nem sempre é fácil, e a Bíblia afirma em várias passagens que descrentes em aparente comunhão com a igreja podem dar alguns sinais ou indicações exteriores que os façam parecer crentes verdadeiros. Por exemplo, Judas, que traiu Cristo, deve ter agido quase exatamente como os outros discípulos durante os três anos em que esteve com Jesus. Tão convincente era a sua conformidade à conduta dos outros discípulos, que, ao final dos três anos de ministério de Jesus, quando ele declarou que um dos seus discípulos o trairia, nem todos suspeitaram de Judas, mas “começaram um por um a perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor?” (Mt 26.22; cf. Mc 14.19; Lc 22.23; Jo 13.22). Porém, Jesus sabia que não havia fé genuína no coração de Judas, pois disse a certa altura: “Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vós é diabo” (Jô 6.70). João mais tarde escreveu no seu evangelho que “Jesus sabia, desde o principio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair” (Jo 6.64). Mas os discípulos mesmos não sabiam.
Paulo fala dos “falsos irmãos que se entremeteram” (Gl 2.4), e afirma que nas suas viagens esteve “em perigos entre falsos irmãos” (2 Co 11.26). Afirma também que os servos de Satanás se transformam “em ministros de justiça” (2 Co 11.15). Isso não significa que todos os descrentes da igreja que dão alguns sinais de verdadeira conversão sejam servos de Satanás agindo secretamente para minar a obra da igreja, pois alguns podem estar ainda ponderando as declarações do Evangelho e avançando rumo à verdadeira fé, outros podem ter ouvido uma explicação incorreta da mensagem evangélica, e outros podem não ter ainda alcançado a verdadeira convicção do Espírito Santo. Mas as declarações de Paulo significam que alguns descrentes dentro da igreja são falsos irmãos e irmãs enviados para perturbar a comunhão, enquanto outros são simplesmente descrentes que acabarão alcançando a genuína fé salvífica. Nos dois casos, porém, eles podem dar diversos sinais exteriores que os façam parecer crentes autênticos.
Podemos ver isso também na declaração de Jesus sobre o que acontecerá no juízo final:
“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de me dizer: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.” (Mateus 7.21-23)
Embora essas pessoas profetizassem, expulsassem demônios e fizessem “muitos milagres” em Nome de Jesus, a capacidade de fazer tais obras não garantia que eram cristãs. Diz Jesus: “Nunca vos conheci”. Não diz: “Eu vos conheci um dia, mas já não vos conheço” nem “Eu vos conheci um dia, mas vos afastastes de mim”, e sim: “Nunca vos conheci”. Nunca foram crentes de verdade.
Ensinamento semelhante se encontra na parábola do semeador em Marcos 4. Diz Jesus: “Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a terra. Saindo, porem, o Sol, a queimou; e, porque não tinha raiz, secou-se” (Mc 4.5-6). Jesus explica que a semente plantada em solo rochoso representa aqueles que “ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam” (Mc 4.16-17). O fato de eles não terem “raiz em si mesmos” indica que não avia fonte de vida dentro dessas plantas; do mesmo modo, as pessoas representadas por tais plantas não têm vida genuína em si. Exibem uma aparência de conversão e aparentemente se tornam cristas, pois aceitaram a palavra “com alegria”, mas, quando vem a dificuldade, elas não são mais encontradas em lugar nenhum – a sua conversão aparente não foi genuína fé salvífica no seu coração.
A importância de persistir na fé é também confirmada na parábola de Jesus como videira, na qual os cristãos são retratados como ramos (Jo 15.1-7). Diz Jesus:
“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não der fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto limpa, para que produza mais fruto ainda. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam.” (João 15.1,2,6)
Os arminianos alegam que os ramos que não dão fruto são ainda assim ramos genuínos da videira – Jesus fala de “todo ramo que, estando em mim, não der fruto” (v.2). Portanto, os ramos que são apanhados, lançados no fogo e queimados devem representar crentes autênticos que foram um dia parte da videira, mas caíram e ficaram sujeitos à condenação eterna. Mas essa questão não é uma implicação necessária do ensinamento de Jesus sobre essa questão. O símile da videira usado nessa parábola é limitado quanto ao volume de detalhes que pode dar. Na verdade, se Jesus quisesse ensinar que associados a ele havia crentes verdadeiros e falsos, e se quisesse usar a analogia da videira e seus ramos, então o único modo de se referir às pessoas que não tinham vida genuína em si seria falar de ramos que não dão fruto (lembrando a analogia das sementes que caíram no solo rochoso: “eles não têm raiz em si mesmos” [Mc 4.17]). Aqui em João 15, os ramos que não dão fruto, embora estejam de certo modo ligados a Jesus e exibam uma aparência de ramos legítimos, assim mesmo dão indicação da sua verdadeira condição pelo fato de não dar fruto. Isso é igualmente indicado pelo fato de a pessoa “não permanecer” em Cristo (Jo 15.6) e ser lançada fora para secar como ramo arrancado da videira. Se tentamos esticar a analogia um pouco mais, dizendo – por exemplo – que todos os ramos de uma videira estão de fato vivos, senão nem estaria ali, então o que fazemos é estender a metáfora além daquilo que ela é capaz de ensinar – e nesse caso nada haveria na analogia que pudesse representar os falsos crentes. O objetivo da metáfora é simplesmente dizer que aqueles que dão fruto, dão, portanto, provas de que permanecem em Cristo; aqueles que não dão fruto, não permanecem nele.
Finalmente, há duas passagens de Hebreus que também afirmam que aqueles que acabam se afastando podem dar muitos sinais exteriores de conversão e parecer cristãos em muitos aspectos. A primeira delas, Hebreus 6.4-6, foi muitas vezes usada pelos arminianos como prova de que os crentes podem perder a salvação. Mas num exame mais detido essa interpretação não se revela convincente. Escreve o autor:
“É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus, e expondo-o à ignomínia.” (Hebreus 6.4-6)
O autor continua com um exemplo extraído da agricultura:
“Porque a terra que absorve a chuva que freqüentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada.” (Hebreus 6.7-8)
Nessa metáfora agrícola, os condenados no juízo final são comparados à terra que não produz vegetação ou fruto útil, mas só espinhos e abrolhos. Quando lembramos outras metáforas bíblicas em que o bom fruto é sinal de verdadeira vida espiritual e a ausência de frutos denuncia os falsos crentes (por exemplo: Mt 3.9-10; 7.15-20; 12.33-35), já temos uma indicação de que o autor está falando de pessoas cuja prova mais confiável da sua condição espiritual (o fruto que produzem) é negativa, sugerindo que o autor fala de pessoas que não são verdadeiramente cristãs.
Alguns já objetaram que a longa descrição de coisas que aconteceram a essas pessoas que se afastaram significa que elas devem ter nascido de novo. Mas essa não é uma objeção convincente quando se examinam os termos usados. O autor diz que “uma vez foram iluminados” (Hb 6.4). Mas essa iluminação significa simplesmente que eles compreenderam as verdades acerca do Evangelho, não que tenham respondido a essas verdades com genuína fé salvífica.
Do mesmo modo, a expressão uma vez, usada para falar daqueles que “uma vez foram iluminados”, traduz o termo grego hapax, que é usado, por exemplo, em Filipenses 4.6 (quando os filipenses enviam doações a Paulo “não somente uma vez, mas duas”) e em Hebreus 9.7 (que fala da entrada no Santo dos Santos “uma vez por ano”. Portanto, essa palavra não significa que algo acontece “uma vez” somente e não pode ser repetida, mas simplesmente que aconteceu uma vez, sem especificar se será ou não repetida.
O texto diz ainda que essas pessoas “provaram o dom celestial” e que “provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro” (Hb 6.4-5). Inerente à idéia de provar é o fato de ser esse provar algo temporário e de a pessoa poder ou não decidir aceitar a coisa provada. Por exemplo, a mesma palavra grega (geuomai) é usada em Mateus 27.34 para dizer que aqueles que crucificaram Jesus “deram-lhe a beber vinho com fel; mas ele, provando-o, não o quis beber”. A palavra também é usada em sentido figurado com o significado de “vir a conhecer algo”. Se interpretamos a palavra nesse sentido figurado, como deve ser entendida aqui, pois a passagem não fala de provar comida de verdade, então isso significa que essas pessoas compreenderam o dom celestial (o que provavelmente significa que experimentaram parte do poder do Espírito Santo em ação) e conheceram parte da Palavra de Deus e parte dos poderes do mundo vindouro. Não significa necessariamente que tiveram (ou não) genuína fé salvífica, mas pode significar simplesmente que a compreenderam e tiveram alguma evidência do seu poder espiritual.
O texto também diz que essas pessoas “se tornaram participantes do Espírito Santo” (Hb 6.4). A questão é o significado exato da a palavra metochos, que é aqui traduzida como “participante”. Nem todos os leitores das traduções da Bíblia sabem que esse termo tem uma ampla gama de significados e pode sugerir participação e apego bem íntimos, ou então meramente uma associação mais tênue com a outra pessoa ou pessoas citadas. Por exemplo, o contexto mostra que Hebreus 3.14 torna-se participante de Cristo significa ter uma participação bem íntima com ele numa relação salvífica. Por outro lado, a palavra metochos pode também ser usada num sentido muito mais livre, referindo-se meramente a associados ou companheiros. Lemos que quando os discípulos pegaram grandes quantidades de peixes, a ponto de as redes estarem já se rompendo, “fizerem sinais aos companheiros do outro barco, para que fossem ajudá-los” (Lc 5.7). Aqui, o termo define os que eram meramente parceiros ou companheiros de Pedro e dos outros discípulos na pesca. Efésios 5.7 usa uma palavra muito próxima (symmetochos, composta de metochos e da preposição syn [“com]) quando Paulo exorta os cristãos a ficar atentos aos atos pecaminosos dos descrentes: “… Não sejais participantes com eles” (Ef 5.7). Ele não está preocupado com a possibilidade de a própria natureza deles se transformar pelo contato com os descrentes, mas simplesmente com a hipótese de o testemunho deles ficar comprometido, de a própria vida deles vir a ser influenciada pelos descrentes.
Por analogia, Hebreus 6.4-6 fala das pessoas que “se associaram ao” Espírito Santo e que, portanto, tiveram a vida influenciada por ele, mas isso não implica que eles vivenciaram a obra redentora do Espírito Santo, nem que foram regenerados. Aplicando analogia semelhante ao exemplo dos companheiros de pesca de Lucas 5.7, Pedro e os discípulos poderiam estar associados a eles e até ser influenciados por eles, sem sofrer uma completa mudança de vida por conta dessa associação. A própria palavra metochos possibilita uma gama de influencia que vai da razoavelmente fraca à razoavelmente forte, pois significa somente “aquele que participa de, partilha de ou acompanha alguém numa atividade”. Foi aparentemente isso que aconteceu a essas pessoas mencionadas em Hebreus 6, que participaram da igreja e portanto tiveram contato com a obra do Espírito Santo, sendo sem dúvida nenhuma influenciados por ele de algum modo.
Por outro lado, diz o texto que é impossível renovar “para arrependimento” as pessoas que experimentaram essas coisas e depois cometeram apostasia. Alguns já argumentaram que se esse é um arrependimento ao qual elas precisam ser renovadas, então deve ser um arrependimento autêntico. Mas isso não é necessariamente verdadeiro. Primeiro, é preciso que esse “arrependimento” (gr. metanoia) não implica necessariamente arrependimento íntimo do coração para a salvação. Por exemplo, Hebreus 12.17 usa essa palavra para falar da mudança de idéia que fez Esaú buscar desfazer a venda do seu direito de primogenitura e refere-se a ela com o termo “arrependimento” (metanoia). Esse não seria um arrependimento para salvação, mas simplesmente uma mudança de idéia e o cancelamento da venda do direito de primogenitura. (Repare também o exemplo do arrependimento de Judas, em Mateus 27.3 – conquanto com uma palavra grega distinta.)
O verbo cognato “arrepender-se” (gr. metanoeó) é às vezes usado para indicar não arrependimento salvífico, mas meramente pesar por ofensas individuais, em Lucas 17.3-4: “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. Se, por sete vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe”. Concluímos que “arrependimento” significa simplesmente pesar por atos realizados ou pecados cometidos. Nem sempre será possível dizer se é ou não genuíno arrependimento salvífico, “arrependimento para salvação”. O autor de Hebreus não se preocupa em especificar se se trata ou não de arrependimento genuíno. Diz simplesmente que se alguém sente pesar pelo pecado, compreende o Evangelho e experimenta as várias bênçãos da obra do Espírito Santo (se dúvida em comunhão com a igreja), mas depois se afasta, não será possível restaurar tal pessoa novamente a uma atitude de pesar pelo pecado. Mas isso não implica que o arrependimento foi genuíno arrependimento salvífico.
A esta altura podemos perguntar que tipo de pessoa se define com todos esses termos. São sem dúvida pessoas que estiveram intimamente ligadas à comunhão da igreja. Sentiram algum pesar pelo pecado (arrependimento). Compreenderam claramente o Evangelho (foram iluminadas). Apreciaram os atrativos da vida cristã e a mudança que acontece na vida das pessoas quando se tornam cristãs, e provavelmente foram atendidas nas suas orações e sentiram o poder do Espírito Santo em ação, talvez até usando alguns dons espirituais, como os descrentes de Mateus 7.22 (“uniram-se” à obra do Espírito Santo, ou se tornaram “participantes” do Espírito Santo e provaram o dom celestial e os poderes do mundo vindouro). Ouviram a verdadeira pregação da Palavra e apreciaram muitos dos seus ensinamentos (provaram a bondade da Palavra de Deus).
Mas, depois, apesar de tudo isso, se “caíram [...] crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.6), então rejeitaram deliberadamente todas essas bênçãos e se voltaram decididamente contra elas. É possível que todos conheçamos (às vezes pela sua própria confissão) pessoas que estão há muito tempo na comunhão da igreja sem ser cristãs nascidas de novo. Há muito tempo ponderam o Evangelho, mas continuam a resistir ao chamado do Espírito Santo, talvez por causa da relutância em entregar a sua soberania a Jesus, preferindo apegar-se a si mesmas.
Ora, o autor nos diz que se essas pessoas deliberadamente rejeitam todas essas bênçãos temporárias, então é impossível renová-las para algum tipo de arrependimento ou pesar pelo pecado. O seu coração estará endurecido, a sua consciência, insensível. Que mais se poderia fazer para trazê-las à salvação? Se lhes dissermos que a Bíblia é a verdade, elas dirão que já a conhecem, mas que resolveram rejeitá-la. Se lhes dissermos que Deus atende a oração e transforma a vida do crente, elas responderão que também já sabem disso, mas que não querem nada disso. Se lhes dissermos que o Espírito Santo tem poder para agir nas pessoas e que o dom da vida eterna é indescritivelmente bom, elas dirão que compreendem, mas não querem nada disso. A sua constante familiaridade com as coisas de Deus e a forte influencia do Espírito Santo só serviu para endurecê-las contra a conversão.
Ora, o autor de Hebreus sabe que na comunidade à qual ele escreve há alguns em perigo de cair dessa maneira (ver Hb 2.3; 3.8,12,14015; 4.1,7,11; 10.26,29,35-36,38-39; 12.3,15-17). Ele quer alertá-los de que, embora tenham participado da comunhão da igreja e experimentado várias bênçãos divinas, ainda assim, se caírem depois de tudo isso não haverá salvação para eles. Isso não implica que ele pense que os verdadeiros cristãos possam se perder – Hebreus 3.14 implica bem o contrário. Mas ele quer que essas pessoas alcancem a certeza da salvação mediante a persistência na fé, e, portanto, sugere que, se vierem a cair, isso mostraria que jamais foram pessoas de Cristo (ver Hb 3.6: “…mas Cristo é fiel como filho sobre a casa de Deus; e esta casa somos nós, se nos apegarmos firmemente à confiança e à esperança da qual nos gloriamos). Portanto o autor quer fazer um grave alerta àqueles em perigo de cair da fé cristã. Ele quer usar a linguagem mais forte possível para dizer: “Vejam aqui até onde a pessoa pode chegar na experiência das bênçãos temporárias, sem no entanto realmente estar salvas”. Ele os exorta a vigiar, pois não basta depender de bênçãos e experiências temporárias. Para isso, ele fala não de uma verdadeira mudança no coração ou de algum bom fruto, mas simplesmente das bênçãos e experiências temporárias que essas pessoas tiveram e que lhes deram uma compreensão parcial do Cristianismo.
Por essa razão, ele imediatamente passa da descrição desses que cometem apostasia a outra analogia que mostra que tais pessoas que se afastam jamais deram fruto autêntico. Como já explicamos acima, os versículos 7-8 falam dessas pessoas usando a metáfora dos “espinhos e abrolhos”, tipo de frutos que nascem no solo que não tem em si vida prestável, ainda que receba repetidas bênçãos de Deus (nos termos da analogia, ainda que a chuva freqüentemente o regue). Convém notar aqui que as pessoas que cometem apostasia não são comparadas a um campo que um dia deu bom fruto e agora já não dá, mas sim a uma terra que jamais deu bom fruto, porém apenas espinhos e abrolhos. A terra pode parecer boa antes do surgimento dos brotos, mas o fruto dá a prova incontestável de que a terra é ruim.
Forte apoio a essa interpretação de Hebreus 6.4-8 se encontra no versículo imediatamente seguinte. Embora o autor venha falando com muita dureza sobre a possibilidade de apostasia, ele agora volta a falar da situação da grande maioria dos leitores, que ele julga serem cristãos de verdade. Diz: “Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira” (Hb 6.9). Mas a questão é: “coisas que são melhores” que o quê? O plural “coisas que são melhores” forma um contraste apropriado com “boas coisas” mencionadas nos versículos 4-6: o autor está convencido de que a maioria dos seus leitores experimentou coisas melhores que as meras influências parciais e temporárias do Espírito Santo e da igreja, mencionadas nos versículos 4-6.
De fato, o autor fala dessas coisas dizendo (literalmente) que se trata de “coisas que são melhores e pertencentes à salvação” (gr. kai echomena sótérias). Essas não são somente as bênçãos temporárias mencionadas nos versículos 4-6, mas coisas melhores, coisas que não têm somente influência temporária, mas que são também “pertencentes à salvação”. Assim, a palavra grega kai (“também”) mostra que a salvação é algo que não fazia parte das coisas mencionadas nos versículos 4-6 acima. Portanto, a palavra kai, que não é traduzida explicitamente nas versões RSV e NVI (mas a NASB chega perto), proporciona uma chave vital à compreensão da passagem. Se o autor quisesse dizer que as pessoas mencionadas nos versículos 4-6 estavam realmente salvas, então seria muito difícil compreender por que ele diria no versículo 9 que estava persuadido de coisas que são melhores para elas, coisas pertencentes à salvação, ou que carregam em si a salvação além das coisas mencionadas acima. Ele assim mostra que, se quiser, pode usar uma curta expressão para dizer que as pessoas “têm salvação” (ele não precisa enfileirar muitas expressões) e mostra, além do mais, que as pessoas de quem fala nos versículos 4-6 não estão salvas.
O que são exatamente essas “coisas que são melhores”? Além da salvação mencionada no versículo 9, são coisas que dão real prova de salvação – fruto genuíno (v. 10), plena certeza de esperança (v. 11) e fé salvífica, do tipo exibido por aqueles que herdam as promessas (v. 12). Dessa forma ele tranqüiliza os verdadeiros crentes – aqueles que dão fruto e demonstram amor pelos outros cristãos, que exibem esperança e fé genuína que perdura até o tempo presente, e que não estão prestes a se perder. Ele quer tranqüilizar esses leitores (que certamente são a maioria), ao mesmo tempo lançando um forte alerta aos que dentre eles possam estar em perigo de perdição.
Ensinamento semelhante se encontra em Hebreus 10.26-31. Ali diz o autor: “Se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados” (v. 26). A pessoa que rejeita a salvação de Cristo e que “profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado” (v. 29) merece castigo eterno. Isso, novamente, é um grave alerta contra a apostasia, mas não deve ser tomado como prova de que alguém que verdadeiramente nasceu de novo possa perder a salvação. Quando o autor fala sobre o sangue da aliança “com o qual foi santificado”, a palavra santificado é usada simplesmente para denotar a santificação exterior, como a dos antigos israelitas, por uma ligação exterior com o povo de Deus. A passagem não fala de alguém genuinamente salvo, mas de alguém que recebeu alguma influencia moral benéfica mediante o contato com a igreja.
Outra passagem, esta dos escritos de João, é usada para sustentar a possibilidade da perda da salvação. Em Apocalipse 3.5, diz Jesus: “O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida”. Alguns sustentam que, dizendo isso, Jesus sugere que é possível que ele venha a apagar os nomes de algumas pessoas do Livro da Vida, pessoas que já tinham seus nomes escritos ali e que portanto já estavam salvas. Mas o fato de Jesus afirmar enfaticamente que não fará algo não pode ser usado para pregar que fará a mesma coisa nos outros casos! O mesmo tipo de construção grega é usada para exprimir uma negação enfática em João 10.28, onde Jesus diz: “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão”. Isso não significa que algumas das ovelhas de Jesus não ouvem a sua voz nem o seguem, e por isso perecerão; afirma simplesmente que as suas ovelhas com certeza não perecerão. Do mesmo modo, quando Deus diz – “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5) – não sugere que deixará ou abandonará outras pessoas; apenas declara enfaticamente que não deixará nem abandonará o seu povo. Ou, numa analogia ainda mais próxima, de Mateus 12.32, Jesus diz: “Se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir”. Isso não significa que alguns pecados serão perdoados no porvir (como alegam os católicos romanos para sustentar a doutrina do purgatório) – isso não passa de um erro de raciocínio: dizer que algo não irá acontecer no porvir não implica que pode acontecer no porvir! Do mesmo modo, Apocalipse 3.5 é apenas uma firme garantia de que aqueles que estiverem trajando vestes brancas e que permanecerem fieis a Cristo não terão os seus nomes apagados do Livro da Vida.
Finalmente, certa passagem do Antigo Testamento é muitas vezes usada para argumentar que as pessoas podem perder a sua salvação: a história do Espírito Santo que se aparta do rei Saul. Mas Saul não deve ser tido como exemplo de ninguém que perdeu a salvação, pois o “Espírito do Senhor” se retirou de Saul (1 Sm 16.14) imediatamente depois de Samuel ter ungido Davi rei, ocasião em que o “Espírito do Senhor se apossou de Davi” (1 Sm 16.13). na verdade, a descida do Espírito do Senhor até Davi é relatada no versículo imediatamente anterior àquele em que se narra que o Espírito saiu de Saul. Esse vínculo estreito significa que a Bíblia não fala aqui de perda total da obra do Espírito Santo na vida de Saul, mas simplesmente do afastamento do Espírito Santo como meio de consagrar Saul como rei. Porém isso não significa que Saul foi condenado por toda a eternidade. É simplesmente muito difícil dizer com base nas páginas do Antigo Testamento se Saul, ao longo de sua vida, foi (a) um homem não regenerado que tinha liderança e foi usado por Deus como demonstração do fato de que alguém digno de ser rei aos olhos do mundo não era só por isso apto para ser rei do povo do Senhor, ou (b) um homem regenerado, mas falto de entendimento, levando uma vida que cada vez mais se afastava do Senhor.
Fonte: Teologando
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