domingo, 17 de outubro de 2010

Era ou não era Samuel? (1Sm 28)

Uma frequente discussão entre evangélicos é se era ou não Samuel quem estivera presente no episódio de Saul e a médium de En-Dor. Abaixo um fragmento da apostila de Teologia Bíblica do Antigo Testamento do SBPV, desenvolvida por Carlos Osvaldo C. Pinto em 2006.

Este famoso incidente é uma fonte de perplexidade para os evangélicos e uma falsa mina de ouro para os chamados espiritualistas. Estes, buscam aqui apoio para o mediunismo, entendendo que a médium foi capaz de trazer Samuel dos mortos. A reação da médium (v.12), todavia, revela o terror de que foi possuída quando percebeu que a aparição não era aquela à qual estava acostumada, fosse essa um ambuste ou uma manifestação demoníaca. Além disso, o conteúdo dessa entrevista fere frontalmente o perfil psicológico das sessões espiritas, onde o tom é sempre de conforto, de reafirmação e otimismo.


Já os evangélicos insistem em que não poderia ser Samuel pois sua aparição violaria o mandamento de não consultar os mortos (Lv 20.27; Dt 18.10-12). Argumentam ainda, que o relato de 1 Samuel 28.7-25 é resultado do testemunho ocular dos servos de Saul, que eram supersticiosos e indignos de confiança. (1Sm 21.7; 26.6). O relato, portanto, seria incorreto. Argumentam ainda, à luz da história do rico e Lázaro (Lc 16.20-31), que Samuel não poderia ter voltado, porque Jesus declarou que tal volta é impossível. Um último argumento é que a profecia e a cronologia descritas na entrevista de En-Dor não se cumpriram, pois o Espírito anunciara a morte de Saul e de todos os seus filhos no dia seguinte. Esta última não teria se cumprido porque há um intervalo de pelo menos três dias entre o encontro com a médium e a morte de Saul. Além disso, alegam alguns estudiosos evangélicos, os filhos de Saul não morreram todos no combate.

Uma outra abordagem me parece mais convincente. Em primeiro lugar, manter a integridade da narrativa ao invés de rebaixar este capítulo a uma espécie de sub-inspiração. Quando opiniões ou relatos errôneos são inseridos na narrativa bíblica os autores cuidam para que haja alguma indicação de que tal ocorreu (cf. a mulher de Tecoa em 2Sm 14). Em segundo lugar, reconhecendo que há claras proibições divinas quanto à necromancia, e que a norma é a impossibilidade de retorno dos espíritos dos mortos, percebemos também que Deus, em Sua soberana vontade, suspende temporariamente algumas de Suas leis, desde que isso não fira Seu caráter santo. Assim é que, apesar de estar “ordenado aos homens morrer uma única vez, e depois disso o juizo” (Hb 9.27), o filho da sunamita, a filha de Jairo e Lázaro de Betânia (entre outros) foram ressuscitados em seus corpos naturais e morreram pela segunda vez! Isso se aplica também ao fato de Deus ter permitido que Samuel aparecesse para cumprir Seus soberanos propósitos nas vidas de Saul e Davi.

Em terceiro lugar, algumas “pistas” do autor de Samuel, que foi guiado pelo Espírito Santo (2Pe 1.20-21), sugerem que Deus usou sua narrativa para deixar clara aos leitores a completa rejeição de Saul. A menção ao manto (em hebraico me’il) nos remete ao incidente da rejeição (cf. 15.27-28), que foi anunciado de modo absoluto e inescapável em 28.17. As palavras e os objetos aqui mencionados espelham o incidente do manto rasgado, em que Samuel anuncia que o reino seria arrancado das mão de Saul. A mensagem é clara: Saul já passou do ponto de retorno, não há mais esperança. Ninguém, nem os vivos nem os mortos, poderá ajudá-lo a escapar do juízo de Deus. Esta mensagem por si só já elimina a acusação falsa de que defender a aparição de Samuel é declarar que o espiritismo é aceitável. Algumas vezes Deus permite o erro para ensinar mais dramaticamente as suas terríveis consequências.

Em quarto lugar, a acusação de imprecisão histórica revela pouca sensibilidade ao estilo de narrativa de 1 e 2 Samuel, que alterna Saul e Davi para fazer contrastes entre o rei rejeitado e o rei aprovado. Nesta divisão, por exemplo, Saul não obtem qualquer resposta de Deus (pois havia expulso o sumo sacerdote e rejeitado os profetas), ao passo que Davi tem comunicação frequente e positiva com o Senhor (30.7-8). Assim, dizer que Samuel errou a predição pois Saul não teria morrido senão três dias depois da famosa entrevista é ignorar o uso frequente de contraste, não de cronologia, como o princípio dominante da narrativa. Os três dias são referentes a Davi, e dizem respeito ao que aconteceu entre os filisteus enquanto Saul preparava seu exército próximo aomonte Giboa. En-Dor ficava a uma distância pequena da cena de batalha, e Saul teria facilmente voltado às suas linhas a tempo para a batalha fatídica. De passagem, ele teve de atravessar as linhas inimigas, o que mostra que, apesar de desesperado, não era covarde nem estava mentalmente incapacitado. Quanto aos filhos de Saul, Samuel não afirmou que TODOS morreriam, incorrendo assim um erro. Somente quem já pressupõe falsidade da narrativa é que vê a afirmação do profeta abrangendo todos os filho de Saul. Um conhecimento mais preciso de história ajudaria a entender que os monarcas não levavam todos os filhos à batalha, evitando assim a extinção da dinastia.

Por fim, o suposto argumento teológico de Samuel não teria dito a Saul que este se acharia no mesmo lugar que ele, dada a condição espiritual de cada um, revela insensibilidade ao progresso da revelação. Mesmo adimitindo que Samuel já estivesse no seio de Abraão (i.e., em comunhão com Abraão [e Deus]), a narativa histórica foi feita de acordo com a revelação concedida por Deus naquela época, que apesar de correta, era incompleta. Saul estaria com Samuel na mesma esfera de existência, que o Antigo Testamento descreve como SHEOL. Estabelecer uma definição teológica absoluta nesta passagem é impor a teologia do Novo Testamento, em lugar de deixar esta último falar por si. Tal colocação revela outra pressuposição tradicional entre evangélicos: a de que Saul não podria ir para o “céu,” por ter cometido suicídio, questão que permanece aberta a discussão.

À luz destas observações, é possível concluir que Samuel de fato apareceu, soberanamente enviado por Deus para revelar Sua inflexível determinação de julgar Saul por sua rebeldia. A passagem de maneira nenhuma ensina que tal prática é aceitável perante Deus ou que possa repetir-se hoje. Ensina, isto sim, que a obediência a Deus não é uma questão de conveniência humana; quem escolhe adiar a obediência,na esperança de um tempo mais apropriado ou de circunstâncias mais convenientes, poderá se arrepender amarga e eternamente de tal escolha.

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